Não ignoro que há racistas no nosso país e que, pontualmente, esse seu racismo pode levar a coisas sérias e graves, incluindo à morte de pessoas. Mas Portugal não é, felizmente — e falo em termos gerais —, um país racista, não é o Mississipi em chamas da Europa, e, as mais das vezes, aquilo que passa por racismo são coisas da vivência de todos nós, que, em certos casos, envolvem uma ou mais pessoas negras — uma altercação, uma crítica, uma troca de insultos, etc. Sucede, porém, que há em Portugal muitos anti-racistas de plantão, injectados e adubados por via universitária ou partidária. Essas pessoas estão sempre alerta, sempre à espreita, sempre à cata do menor episódio que se preste a ser aproveitado para gritar aos sete ventos que Portugal é um país racista. Os anti-racistas de plantão são caixas de ressonância uns dos outros e são especialistas em fazer, como diria Schakespeare, much ado about nothing. Em consequência disso, a coisa ínfima ganha volume, torna-se mais encorpada, e forja-se uma situação de escândalo, de indignação pública, que desemboca invariavelmente na imprensa e em falsas certidões de que existiria entre nós um racismo poderoso, actuante, omnipresente, opressivo, sistémico, estrutural.

O último episódio desse tipo de que tive conhecimento envolve a artista portuguesa de origem africana Grada Kilomba que, ao que parece, não se conforma (ou alguém por ela) com o facto de não ter sido escolhida para representar Portugal na próxima Bienal de Veneza. Esse facto ganhou imediata retumbância nas redes sociais, com muitos anti-racistas de plantão a escreverem textos indignados e acusatórios. Em paralelo, o facto chegou aos jornais, deu origem a artigos do opinião, à inevitável e recentíssima “carta aberta em defesa de Grada Kilomba” e, como estes anti-racistas de plantão têm um lobby com muitos braços, repercutiu mesmo no estrangeiro — tornando, por isso, o clamor mais “importante” ou mais “credível”.

Aquilo que se tem apontado a Nuno Crespo, o membro do júri que avaliou menos favoravelmente o projecto de Grada Kilomba, é o facto de ter tido uma opinião diferente da dos outros três membros do júri, e de, em conformidade, ter atribuído ao projecto em causa notas apenas sofríveis (o que fez baixar a média geral da candidata). Em muitos dos textos que então se escreveram, acusou-se, de forma velada ou expressa, Nuno Crespo de ser alguém que teria agido de má-fé, motivado por racismo e, aos olhos de alguns, também por misoginia e lusotropicalismo. Vale a pena observar mais de perto o texto acusatório de um desses anti-racistas de plantão porque ele é muito elucidativo acerca dos vícios de um certo modo de pensar. O anti-racista em causa é o economista Jorge Fonseca de Almeida, pessoa que acha que no nosso país o ensino da disciplina de História é, e cito-o, “propaganda colonial”. Fonseca de Almeida apresenta o assunto em causa da seguinte forma: “Grada Kilomba é uma das mais conceituadas e internacionais escritoras e artistas plásticas portuguesas, professora na prestigiada Universidade de Humboldt em Berlim. Pois foi afastada da representação nacional sem razão aparente que não seja a denuncia do passado colonial que a sua obra faz. Como aliás o parecer de um dos jurados candidamente o afirma. Afasta-se assim uma das mais importantes artistas portuguesas Negras da representação nacional num dos certames internacionais mais importantes. Lembra a triste decisão de júri, de igual dimensão moral e intelectual, que afastou Saramago por falta de qualidade.” Para o economista Fonseca de Almeida, e cito-o novamente, este “inacreditável caso de perseguição à artista Grada Kilomba” é mais um dos casos de racismo em que o nosso país seria fértil.

Não conheço Nuno Crespo, o jurado a que Almeida se refere, e de Grada Kilomba conheço apenas alguns momentos da sua carreira artística e a sua recente exposição em Belém — sobre a qual, aliás, em devido tempo escrevi. Mas nada me move contra Grada Kilomba e desejo-lhe os maiores sucessos, desde que merecidos. E esse é o ponto que me parece importante sublinhar. Não me vou pronunciar sobre méritos ou deméritos artísticos e conceptuais deste projecto específico de Grada Kilomba (nem do de Pedro Neves Marques, a pessoa que foi escolhida para representar Portugal na Bienal de Arte de Veneza) porque não estou em posição de o fazer. Mas o que para mim é óbvio é que as pessoas negras podem perder concursos, tal como as de qualquer outra cor de pele, sem que isso seja necessariamente suspeito, conspirativo, persecutório ou racista.

Não, Jorge Fonseca de Almeida, Grada Kilomba não foi “afastada”, como tendenciosamente escreveu. Simplesmente não foi a pessoa escolhida. Não ganhou. Haverá coisa mais natural do que essa? Qualquer pessoa que se tenha sujeitado a concursos com júri sabe que pode ganhar ou não. Sei-o por experiência própria e nunca me passou pela cabeça reclamar por não ter sido escolhido. O que me parece importante assegurar é que ninguém tenha de ganhar pelo nascimento, pela reputação que já adquiriu ou pelo grupo de pressão que tem atrás de si. Porque a questão que aqui se põe é a seguinte: porque é que a artista Grada Kilomba devia necessariamente ter sido escolhida? Por ser negra (como se depreende das “manifestações” e “indignações” dos anti-racistas de plantão)? Por ser, alegadamente, “uma das mais conceituadas e internacionais escritoras e artistas plásticas portuguesas, professora na prestigiada Universidade de Humboldt em Berlim”, como Jorge Fonseca de Almeida escreveu numa evidente overdose panegírica?

Em vez de espalharem insultos e acusações graves a torto e a direito, em vez de verem constantemente tenebrosas intenções no comportamento dos que de algum modo os contrariam — Nuno Crespo, neste caso —, os anti-racistas de plantão deviam tentar demonstrar à opinião pública os superiores méritos do projecto de Grada Kilomba quando comparados com os do projecto que efectivamente ganhou. Reclamar por não ter sido ela a seleccionada é pobre e pueril. Mas não há dúvida que ajuda a construir a tal imagem de Portugal como país racista e talvez seja esse o principal objectivo de tanta e tão persistente gritaria.

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