Foram precisos 65 dias, cinco mortos e uma inédita invasão do Parlamento americano para Trump ter finalmente a decência de aceitar a derrota nas presidenciais de 3 de Novembro. Ou talvez não tenha sido decência. Talvez tenha sido apenas o medo de ser destituído ou de responder em tribunal por incitamento à violência. Com ele, nunca se sabe. Mas esta saída de cena grotesca, até para ele, recorda-nos que os homens fazem a história, mais do que são feitos por ela. E um homem, para o bem e para o mal, pode mudar a história. Chama-se a isto responsabilidade individual e é a base da nossa civilização.

Trump é responsável pelo gravíssimo ataque à democracia que teve lugar há três dias, em Washington. É responsável pelas alegações infundadas de fraude que puseram em causa a transição pacífica de poder. É responsável pelas pressões a funcionários e políticos eleitos para alterarem os resultados. É responsável pelo apelo a uma multidão violenta para impedir a contagem de votos no Colégio Eleitoral. É responsável por cada um dos cinco mortos no assalto ao Capitólio. É responsável por um mandato de quatro anos que degradou a vida política americana a um nível inimaginável.

Não é certamente o único. Outros, na América e fora dela, aplaudiram o seu desprezo pelos adversários, pelas regras democráticas, pela mínima civilidade política, pelos que não pertencem à tribo certa. Também em Portugal. Se André Ventura fosse ministro da Administração Interna, à boleia da coligação de direita pela qual tanto suspira, seria capaz de conter uma manifestação de skinheads em S. Bento que ameaçasse a deputada Joacine Katar Moreira?

Dir-me-ão que é uma hipótese absurda. Discordo. Concretizou-se em Washington esta semana e também parecia absurda na semana passada. Concretizou-se em Portugal, no cerco à Constituinte de 75, e também parece absurda hoje. No primeiro caso, às mãos da alt right americana. No segundo, às mãos da extrema-esquerda portuguesa. Em ambos os casos, era e é uma questão de civilização pedir contas aos responsáveis. Porque era e é o mesmo combate entre a civilização e a barbárie. Com a diferença de que agora os bárbaros, ao contrário do que dizem Trump e Ventura, não vêm de fora. Os bárbaros já estão cá dentro – e são eles.

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