A publicação do Decreto-Lei 61/2018, sobre Centros Académicos Clínicos, em agosto deste ano, poderia ter sido só uma boa notícia. Não foi. O problema é que este diploma que propositadamente só agora comento, contém alguns vícios de conceção sobre o que deve ser o papel assistencial do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Bem sei que este texto, como muitos outros que tenho escrito, poderá parecer muito técnico e longe do grande público mas o tema da investigação clínica, subjacente ao decreto-lei, deve interessar todos os beneficiários do nosso SNS e é um assunto de enorme impacte político.

O Decreto-Lei em apreço estabelece o conceito de Centro Académico Clínico como forma de voltar a apresentar e resolver alguns dos problemas pendentes no que diz respeito à articulação entre Faculdades de Medicina e Hospitais do SNS. Sem as primeiras não se formam médicos e sem os segundos não há ensino clínico. Não será por acaso que se criaram Centros Académicos Clínicos, em vez de Centros Clínicos Académicos. A diferença não é despicienda.

Ensino de Medicina e SNS são indissociáveis. A dependência que o ensino da medicina tem do SNS é tão grande quanto todos os projetos de constituição de escolas médicas privadas, uma necessidade absoluta para o ensino médico nacional, preveem acordos de colaboração e prestação de aulas em unidades do SNS. O País precisa de formar mais médicos, com a urgência que a longíssima formação médica possa permitir, e precisa que ensino, clínica e investigação, componentes essenciais da prática médica, estejam articulados com um modelo de interdependência que nunca poderá ser confundido com subserviência de uma parte para com a outra. Também por tudo isto, tenho defendido que a formação médica pré-graduada seja moldada por condicionalismos que envolvam as necessidades de médicos para Portugal, com o perfil de médicos de que necessitamos, e uma visão não meramente centrada na empregabilidade clínica em Portugal dos jovens que escolherem ser médicos. Esta análise de condicionalismos implicaria uma intervenção paritária dos ministérios responsáveis pela saúde e pelo ensino superior. O que acabo de escrever para a medicina é, obviamente, válido para todas as profissões da saúde.

Ora bem, o Decreto-Lei é, como habitualmente, palavroso, extenso, complexo e muito hermético. Vejamos a definição. “Os centros académicos clínicos são estruturas integradas de atividade assistencial, ensino e investigação clínica e de translação, que associam unidades prestadoras de cuidados de saúde, instituições de ensino superior e/ou instituições de investigação públicas ou privadas”. Vejam como teria sido diferente e muito mais abrangente ter escrito que “Os centros académicos clínicos são estruturas integradas de atividade assistencial, ensino e investigação clínica e de translação, que associam unidades, públicas ou privadas, prestadoras de cuidados de saúde, instituições de ensino superior e/ou instituições de investigação”. Na primeira versão só se aceita a participação de instituições privadas de investigação, na segunda há a possibilidade de aceitar instituições privadas prestadoras de cuidados clínicos. Enfim, pormenores que, neste particular, seguem uma ideologia que mais à frente será subvertida.

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Voltando ao assunto central, muito mais do que andar a prever associações e consórcios, com os intricados jurídicos que não resolvem o primordial, o financiamento, teria sido mais simples olhar para a gestão dos hospitais com estatuto de universitário e aplicar-lhe um sistema de contrato em que o ministério do ensino superior pagaria o uso dos hospitais em que queira ensinar, incluindo o tempo despendido em ensino pelos profissionais médicos e, claro está, mantendo a lógica de separação em vigor para as carreiras médica e docente, com a primeira a ser preponderante sobre a segunda em tudo o que envolver assistência clínica, direções de serviços de ação clínica, etc. Note-se que este Decreto-Lei não interpela nenhum destes problemas de jurisdição de espaço e pessoal, sendo que é necessário assumir que o território de um hospital do SNS é uno e só ao SNS deve pertencer.

Não faltam os habituais conselhos e comissões. Temos um conselho clínico e estratégico e, não poderia faltar, um conselho nacional dos centros académicos. Um dia farão as contas aos cafés e bolinhos consumidos em tanta reunião de comissários, conselheiros e consultores.

Vamos ao sumo. Os centros académicos clínicos têm como objetivo, para lá do bate-papo habitual, “o estabelecimento do foco da atividade na promoção da qualidade dos cuidados de saúde prestados às populações com base numa resposta adequada às suas diferentes necessidades”. Não é isto que se espera de toda a instituição de saúde, em especial do SNS? “Os membros do centro académico clínico afetam à concretização dos objetivos deste os seus recursos humanos, financeiros e materiais que se revelem necessários à execução dos planos de atividades aprovados, nos termos da legislação aplicável, atendendo à sua natureza e modelo de gestão”. Mas o financiamento vem de onde e quem o assegura? “As receitas dos membros do centro académico clínico resultantes da atividade deste são afetas prioritariamente ao desenvolvimento da atividade do centro académico clínico, respeitando os planos de atividades previamente aprovados”. Que receitas são essas? Resultam de investigação? De dinheiro angariado através da sujeição dos doentes a ensaios clínicos remunerados? De prestação de que outros serviços? Prestação de cuidados? Taxas moderadoras “VIP”? Do ensino? “Resultantes da atividade”, quer dizer que não serão contempladas no Orçamento de Estado. Certo? Esta mudança de paradigma é muito mais importante do que parece e revela uma visão mercantilista que não se compagina com os ideiais da política de esquerda. O PCP e o BE reparam nesta “nova” visão do socialismo?

É preocupante, para lá da visão de filhos e enteados no SNS que emana deste diploma, a opacidade sobre o financiamento de toda a operação assistencial dos novos centros. Desejo que a visão do legislador não tenha sido imaginar que a “venda” de ensaios clínicos seria a forma mais escorreita de criar receitas que sustentem esses hospitais ou que, de alguma forma, ajudem a minorar o buraco do sub-financiamento. Se a ideia for registar patentes, matéria em que muitas vezes os nossos investigadores falham, já há que aplaudir.

A verdade é que este diploma tem, além de muita palha, um conjunto de ideias positivas sobre avaliação de desempenho clínico e científico que, sendo indissociáveis têm de nortear toda a prestação das unidades clínicas do SNS e não apenas os centros académicos.

A revogação do Decreto-Lei nº 110/2014 que tinha instituído o Fundo para a Investigação em Saúde, do Ministério da Saúde e independente, é a nota mais absurda e geradora de preocupação de todo este diploma. Elimina-se o Fundo, não se apresenta alternativa e, de uma só vez, entrega-se o financiamento da investigação clínica à indústria farmacêutica ou aos escassos fundos internacionais que não estão, por todas as razões, interessados em responder às questões clínicas relevantes para Portugal. Estes temas terão de ser abordados de forma consequente, além do mais por envolverem investigação dispendiosa, através de projetos montados e pagos pelo ministério da saúde. Note-se como, ainda recentemente, houve alguns investigadores de créditos firmados que não foram contemplados nos financiamentos atribuídos pela FCT e, no caso da malária, teria cabimento que o ministério da saúde fosse o financiador. Uma solução poderia passar por criar um mecanismo de alívio fiscal junto das empresas que financiassem investigação em saúde, de interesse nacional previamente definido pelo ministério da saúde, através do Fundo que foi extinto em agosto. Ou, no caso da indústria farmacêutica, pode-se tornar transparentes as regras que orientam o cálculo de investimentos em investigação que são usados para diminuir o valor de lucros obtidos com a venda de medicamentos. É que esses lucros estão sujeitos a um teto que, uma vez ultrapassado, é sujeito a uma taxa de payback ou à devolução, sofre a forma de “notas de crédito”, ao SNS. Logo, um fundo para investigação, seria uma forma de a indústria explicitamente financiar investigação de interesse público, não apenas a do seu interesse, e conseguir manter-se abaixo do teto de lucro que negociaram com o Estado.

Com o Decreto-Lei nº 61/2018 de 3 de agosto, o Ministério da Saúde desiste da investigação clínica por si financiada. Entrega a procura do conhecimento médico ao melhor pagador. Contribui para transformar as doenças dos doentes em objetos de financiamento das suas instituições. Segue um conjunto de ideias em voga, apesar de enganadoras e perigosas, de que o SNS precisa de investigação clínica para se financiar, por um lado, e garantir o acesso a medicamentos que de outra forma não seriam acessíveis no setor público. Nenhum destes argumentos é o mais relevante para a necessidade de haver investigação clínica no SNS. São consequências, a possibilidade de poder haver angariação de fundos por via da investigação paga e o acesso extraordinário a tratamentos experimentais, mas não devem ser as razões para querer mais e melhor investigação.

Os ensaios clínicos são uma fonte insubstituível de conhecimento e a única forma de podermos adquirir saber e experiência que possa ser útil aos futuros doentes. É essencial que os doentes de hoje queiram ter a bondade de entrar em ensaios que poderão ser úteis para quem adoecer mais tarde. Mas os ensaios clínicos não podem ser assumidos primariamente como uma fonte de financiamento dos hospitais, alternativa ao orçamento do Estado, nem são construídos para serem úteis aos doentes que neles participam. Se estiverem bem desenhados e forem eticamente irrepreensíveis, garantem que nenhum doente será prejudicado, mas não podem garantir que alguns sejam beneficiados. Se já se soubesse onde está o benefício, não se faria um ensaio clínico. A investigação não substitui a prática corrente. Um ensaio não pode ser apresentado como uma vantagem para os doentes de hoje, nem como uma forma de garantir acesso a novos medicamentos. Substituir o acesso a tratamentos inovadores de efetividade comprovada, a que os doentes têm direito, por ensaios clínicos de novos remédios é um atropelo às obrigações do SNS. É certo que os doentes incluídos em ensaios clínicos têm acesso a cuidados clínicos de excelência, mas o caminho é garantir os mesmos padrões de excelência a todos os doentes. Os ensaios clínicos complementam, mas nunca substituem a melhor prática. Os ensaios clínicos são um motor de aprendizagem e de melhoria da qualidade clínica e isso é o mais relevante.

Se o SNS quer adquirir mais conhecimento clínico que seja útil para os Portugueses tem de se munir de meios e financiar a investigação independente, através do seu orçamento. O SNS precisa de centros clínicos que sejam académicos e não de centros académicos que também sejam clínicos, no intervalo das aulas ou das investigações. O modelo de dicotomia Faculdade vs Hospital, plasmada até na contratação de professores e médicos e com consequências nefastas nas atribuições de responsabilidades em Hospitais Universitários, está esgotado há dezenas de anos. Acresce que para termos investigação clínica com dimensão relevante, precisamos de coordenadores de estudos (study coordinators), gestores de dados (data managers) e enfermeiros de investigação (research nurses), em tempo completo e pagos pelo SNS. Precisamos de profissionais de apoio à investigação. Isto é muito mais importante do que ceder 30% do tempo de trabalho clínico a chafurdar em registos clínicos de má qualidade. Criar centros académicos clínicos até poderia ser uma boa ideia mas, bem vistas as coisas, o texto do diploma de agosto termina com uma lista de hospitais do SNS que já existem e a quem mudam o nome, sem que se lhes garanta mais nada. Nem dinheiro, nem pessoas, nem coisa nenhuma. Parabéns. São centros académicos clínicos e tratem de sobreviver como puderem. Está feito e assim se cumpre um programa do Governo. É vistoso, mas só para quem lê o Diário da República. Para os doentes, nada de novo.

Antigo ministro da Saúde