O Mundo VUCA – volátil, incerto, e ambíguo – que nos últimos anos se foi desenhando de forma gradual decidiu bater a muitas portas onde não era totalmente visível e entrar sem pedir autorização. As transformações que a presente crise tem vindo a trazer às nossas vidas pessoais e profissionais ainda não são totalmente perceptíveis e necessitam de algum tempo e distância para as podermos avaliar, mas já as conseguimos sentir, assim como as dificuldades que surgiram à boleia.

O trabalho remoto tem sido um tema de intenso debate. Uns amam, outros odeiam. Mas restam poucas dúvidas de que se quebrou o mito da infalibilidade do escritório e que o futuro trará soluções híbridas em formatos muitos particulares. Mas as histórias de insucesso vão-se somando e chegam-nos relatos de situações trágicas: colaboradores em completo desgaste, desorganização, perda de produtividade e casos da “digitalização” do pior que a natureza humana tem. Neste artigo procurei fazer uma resenha daqueles que considero ser os maiores pecados das transições para o trabalho remoto.

Novo paradigma, mesmos processos

Existe uma tentação de se cair na máxima do Príncipe de Salina de que por vezes tudo tem que mudar, para que tudo fique na mesma. À superfície, a organização mudou. Os colaboradores, ou parte deles, já não estão no escritório e uma série de novas ferramentas, algumas bem dispendiosas, foram colocadas à sua disposição. No entanto, a alta gestão não se preocupou em redesenhar os processos. Um exemplo para lá dos típicos é o de algumas universidades que, adoptando o ensino e a própria avaliação remota se dispensaram de reinventar os conteúdos, o método de ensino e o método de avaliação, contribuindo para uma mistela que tem atormentado os docentes e prejudicado os alunos. Se o digital tem a capacidade de ampliar as nossas capacidades, também é verdade que, sem uma transformação a nível organizacional, pode muito bem ampliar e automatizar os nossos desperdícios e as nossas burocracias.

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Uma análise da MiT Sloan Review aos dados da plataforma Covid-19 Pulse of HR demonstrou que uma das preocupações principais dos colaboradores é a flexibilidade. Essa flexibilidade vai mais longe que a mera escolha do local de trabalho. O horário de trabalho inflexível gerou níveis de burnout perigosos em segmentos como o dos pais. Algumas empresas resolveram isto com medidas básicas como a possibilidade de passar uma jornada de trabalho das 9 às 18 para das 7 às 15 (com a vantagem de retirada a pausa do almoço). Isto é apenas a ponta do iceberg. Tornou-se vital repensar, para as profissões onde isto já é possível, a própria jornada de trabalho, herança da revolução industrial, e adaptar a mesma aos tempos vindouros, com os seus novos desafios.

Esquecer a segurança psicológica

No crepúsculo da 2ª Revolução Industrial, os gestores descobriram que a luz natural nas fábricas melhorava a produtividade dos operários. Em retrospectiva, a prática arcaica de manter humanos afastados da luz do Sol por dezenas de horas diárias parece medieval. Num país onde os dados nos demonstram que o assédio moral é prática corrente e em que o berro e o insulto ainda permanecem no manual de boas práticas de muito bárbaro engravatado, carece reflectir no bem-estar dos colaboradores, cada vez mais na questão psicológica. Uma prática básica adoptada por imensas empresas no auge da pandemia como a monitorização dos níveis emocionais das equipas é um pequeno exemplo de como podemos evoluir, como profissionais e como seres humanos. À boleia desta questão, surge-nos a microgestão. A proliferação de ferramentas de monitorização à distância, que colocam o colaborador num autêntico Big Brother, deve preocupar-nos a todos.

Sempre foi difícil, a todos os níveis das interacções humanas e ao longo da história, ceder autonomia. Mas a confiança é um princípio básico, não só para tornar mais saudáveis as relações profissionais, mas também como dinamizador da produtividade. A autonomia é o terceiro princípio do Drive de Daniel Pink, que se foca naquilo que realmente nos motiva. A microgestão não só esmaga esse princípio como se sobrepõe à nossa privacidade, invadindo o nosso espaço. Pior, contribui para a burocratização dos processos numa era em que temos que responder cada vez mais depressa aos inputs do mercado.

Não aproveitar a dispersão geográfica

O tema tem muito que se lhe diga, até como futuro para o país. Os nómadas digitais, pessoas com trabalhos remotos que viajam pelo mundo ou as colab houses, grupos de estudantes que estudam à distância e vivem juntos, são segmentos muito interessantes que podem e devem ser atraídos para Portugal, combatendo a desertificação, o envelhecimento e a fuga de cérebros que o país vive, com a enorme vantagem, em muitos dos casos, de não competirem ora pelo emprego, ora pelas vagas universitárias com os portugueses. Com a disponibilização da infraestrutura e o investimento adequado no marketing, um grupo de devs de várias nacionalidades dividindo uma vivenda no Alentejo é uma possibilidade risonha.

Isto, claro, também funciona ao contrário. A transição para o remoto permite às empresas aumentar a pool de talentos à sua disposição e permite aos putativos colaboradores aumentar o seu raio de acção, sem ter que sair de casa e pagar rendas exorbitantes na metrópole. O jovem de Famalicão pode trabalhar em Lisboa sem ter que mudar para lá a sua vida e até indo pontualmente ao escritório para alguma reunião relevante. A empresa em Lisboa pode contratar o jovem de Famalicão, que talvez até fosse um fit cultural mais adequado do que tinha nas suas proximidades. O jovem de Famalicão pode trabalhar com alguns dos seus conterrâneos num espaço de co-working e até com alguns nómadas que decidiram aproveitar os preços baixos da cidade e passar lá uns meses, usufruindo da qualidade de vida que os salários estrangeiros permitem a quem cá está. O Gonçalo Hall, fundador do Remote Work Movement, vem alertando, muito antes da pandemia, para as capacidades do remoto em suprir as necessidades, tantos das empresas como dos colaboradores. Esperemos que comece a ser ouvido.

Fake agile

Muitos executivos encontraram na proliferação de consultores de métodos ágeis a bala de prata para resolver muitos destes problemas. Caíram em três erros. Em primeiro lugar, os “novos” métodos ágeis têm pouco de novos. O Lean é filho dos especialistas americanos de controlo de qualidade nos anos 40 e do milagre económico japonês das décadas subsequentes. O Scrum começou a ser teorizado no “The New New Product Development Game”, um artigo da HBR de 1986. O próprio manifesto, de 2001, está desactualizado e vamos assistindo a alguns dos seus subscritores, como o Dr. Allistair Cockburn, procurando, ora resgatar, ora adaptar os seus princípios e algumas das metodologias compreendidas para os dias de hoje. O criador do Crystal e editor da Cutting-Edge Agile identifica três movimentos na era do Pós-Agile. A procura por feedback mais rápido, viral numa era de incrementos ao dia ou à hora e em que os dados nos oferecem cada vez mais informação. O uso de princípios ágeis para lá dos departamentos de software, encontrando sucesso em áreas como o marketing, RH e até no direito. E a simplificação, como resposta ao dogmatismo de algumas práticas ou à complexidade de modelos que vão surgindo e vão sendo implementados por grandes organizações.

Mas há outro ponto. O Agile Executive, que ilustra a bela capa da HBR de Maio/Junho, ou o Agile Business Owner, criado pelo consultor brasileiro e um dos autores da extensão ágil do Babok Luiz Parzianello, apontam para uma necessidade de pensarmos a agilidade para lá dos processos e das operações, como agilidade estratégica. O próprio facto de o Business Agility Instituto ter recentemente ganho morada em Portugal e ser liderado por alguns dos nossos gestores de topos augura um bom caminho. E as falhas na digitalização apressada e na própria implementação do trabalho remoto demonstram a falta de agilidade na alta gestão em repensar processos, o desenho organizacional e o próprio modelo de negócios para acomodar estas transformações e atingir metas de crescimento exponenciais.

O fim do escritório

A necessidade de socialização está entranhada no nosso desenvolvimento emocional e no próprio processo civilizacional. Carecemos de contacto, de proximidade, de construir relações para lá da azáfama das nossas vidas como profissionais. Há um esforço que tem que ser feito para não desumanizar as relações à distância e cair nalgumas armadilhas da despessoalização que temos observado na própria hostilidade que redes como o Facebook potenciaram. Mas a armadilha também existe no outro extremo. Inundar a vida das pessoas com eventos de team building, jogos e happy hours para lá do que o bom senso recomenda, seguindo uma deriva que já vem do escritório de transformar a empresa na família e no grupo de amigos é igualmente pouco saudável, pelo que um equilíbrio é a melhor opção.

Se isto implica o fim do escritório? Não. Se isto implica o fim do escritório como o conhecemos? É muito provável. Vai continuar a ser um espaço de encontros, de reunião e de formação. Algumas empresas optarão por o tornar totalmente opcional, outras dividirão a semana, por entre infinitas possibilidades de combinação. Mas prevêem-se novas tendências. O open space e a própria possibilidade de nos sentarmos em qualquer parte do escritório, a busca de espaços de conforto, como zonas com puffs ou outdoor como já vemos nas empresas tech e a partilha de escritórios entre várias empresas, também herdada desse meio, são tendências a seguir.

Recentemente, entre inúmeras iniciativas digitais, o Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim e Vila do Conde, pela mão da Rita Veloso e da sua equipa, desenvolveu, juntamente com a Shift consulting, de forma benemérita , uma aplicação que permite aos seus colaboradores escolher a sua refeição e as horas da mesma, evitando filas ou o perder o prato desejado e permitindo à cozinha uma maior racionalização da sua gestão. Outra das suas iniciativas anunciadas é a reformulação das áreas de descanso, com um cesto de basket e música ambiente, ambas aparecendo em inúmeros estudos de sucesso no combate ao burnout. O facto de iniciativas deste tipo, durante muito tempo associadas a um pequeno segmento das empresas, estarem a ser implementadas no sector público dá-nos esperança em espaços de trabalho mais humanos e, sobretudo, bem mais produtivos.

Ainda é cedo para tecer conclusões mais expansivas acerca das virtudes e defeitos das vastas realidades do trabalho remoto. Do que sabemos, tem sido laborioso substituir a máquina de café da empresa ou a trocas de impressões in loco. As melhorias na visualização do trabalho e as infinitas ferramentas de apoio não têm, em todas as empresas, conseguido combater o fenómeno do meeting inflation, hipérbole virtual da já tóxica cultura de reuniões atrás de reuniões. A construção de uma cultura corporativa, seja numa pequena empresa, seja numa grande corporação, tem-se feito com uma familiaridade e um conhecimento intrínseco que a distância e a rotatividade tendem a fragilizar. O Management 3.0 de Jurgen Apollo e outras frameworks actualizaram-se com módulos de trabalho remoto. Talvez o país real ainda esteja longe desse cenário ideal. O coaching, que ainda carece de desmistificação no burgo, pode surgir como desbloqueador de novas formas de construção cultural, mas o caminho é, ainda assim, espinhoso.

Este artigo não pretende ser uma bala de prata nem um fim em si mesmo. Pretende abrir um debate. A nossa comunidade, muito fechada em si mesma e com a discussão legada a gurus e académicos vem protelando a criação de um verdadeiro ecossistema onde profissionais, esses que estão no gemba (terreno) trocam experiências e ideias. Este é apenas um mote para tal. Para que conversemos sobre a situação presente e juntos a possamos enfrentar.