A repetitiva expressão “os críticos do Papa” justifica que tentemos perceber quem são afinal os críticos do Papa Francisco e que legitimidade têm.

1. Três críticas, duas medidas

Primeiro exemplo: não são poucos os católicos, teólogos e até bispos, que defendem a ordenação de mulheres. No entanto, eles não são considerados críticos do Papa. Porquê? Desconhecimento? O Papa Francisco já deixou claro numa entrevista que não é possível a ordenação de mulheres. É certo que uma entrevista não é magistério. Vejamos o ponto 104 da Evangelii gaudium: «O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão […]» Por sua vez, o Prefeito da Congregação para a Doutrina e a Fé, nomeado pelo Papa Francisco, o Cardeal Ladaria, Jesuíta, escreveu que «causa séria preocupação ver surgir ainda em alguns países vozes que colocam em dúvida a definitividade desta doutrina.» E acrescenta: «Semeando estas dúvidas cria-se grave confusão entre os fiéis, não somente sobre o sacramento da Ordem como parte da constituição divina da Igreja, mas também sobre o Magistério ordinário que pode ensinar a doutrina católica de maneira infalível.»

Agora o segundo exemplo: a existência do demónio. Na Gaudete et Exsultate o Santo Padre fala assim do demónio: «não pensemos que seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia»; «indica um ser pessoal que nos atormenta» (nº 160-161). Já para o Pe. Arturo Sosa, Superior Geral dos Jesuítas, o demónio «existe como realidade simbólica e não como realidade pessoal» (Revista Tempi). Mas também ele não é considerado um crítico do Papa. Neste caso, porém, é mais difícil falar de um desconhecimento.

Terceiro e último exemplo: o agora falecido Cardeal Carlo Caffarra, nomeado membro da Comissão Teológica Internacional pelo Papa Paulo VI e fundador do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família, pediu ao Santo Padre, em privado, acompanhado por outros cardeais, que esclarecesse a célebre nota de rodapé n.º 351 da Amoris Laetitia: a nota que sugere a comunhão para divorciados recasados. Passados meses, ouviu pessoalmente do Santo Padre que não haveria resposta àquela pergunta. Como a Igreja, nos seus documentos, nunca previu um caso em que um Papa se recusasse a responder a uma pergunta doutrinal e bem fundamentada por parte de Cardeais, Caffarra achou, em consciência, que tinha de tornar pública a sua dúvida. Para ele, era a fidelidade a Jesus que estava em causa. Pois bem, a recepção foi quase unânime: ele é “contra o Papa”! O facto é tanto mais estranho quanto mais nos damos conta de que as críticas ao Papa que fomos vendo não se encontram em igual pé de direito.

2. Amoris Laetitia: uma questão de lei ou de amor?

O Cardeal Cafarra tinha a seu favor as palavras mais que evidentes do Evangelho e todo o magistério ordinário universal (cf. ponto 84 da Familiares Consortio). No fundo, ele levantava apenas uma dúvida: quem somos nós, católicos, para pôr em causa as palavras de Cristo?

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Mas o fundamento das dúvidas do Cardeal Caffarra não está apenas nas palavras claríssimas de Jesus sobre um novo casamento como adultério. É que Jesus explica porquê! Levemos a sério as palavras de Jesus sobre o casamento: «De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu o homem não separe». (Mc 10,8-9) Ora, se isto é mesmo assim, se Deus no casamento une duas pessoas numa só carne, se essa união é tal que nenhum homem pode separar, percebe-se o grave problema que levanta uma nova união (sem ser por morte do cônjuge). Portanto, isto não tem a ver só com a “lei”, mas com o poder que a graça de Deus concede ao amor humano no casamento. Perante isto, só há um caminho para uma nova união: mostrar que o primeiro casamento foi nulo, ou seja, não houve casamento, não formaram uma só carne. Poderá haver outro caminho?

Com a interpretação dos Bispos da Argentina sobre a Amoris Laetitia, pelo menos uma nova situação é atendida quando não se pode obter a declaração de nulidade: «Se se chegar à conclusão que, em determinado caso, há limitações que diminuem a responsabilidade e a culpabilidade, particularmente quando uma pessoa considere que cairia numa ulterior falta, magoando os filhos da nova união, Amoris Laetitia abre então a possibilidade de aceder aos Sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia» (ponto 6). Por outras palavras, uma pessoa que continua a ser “uma só carne” com o primeiro cônjuge pode legitimamente aceder aos sacramentos estando unida a uma terceira sem tentar viver “como irmão e irmã”.

Esta situação é tão contraditória que se percebe a existência do ponto 10 do referido documento: «Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa.» Já vimos num artigo anterior que o “ideal”, neste caso, é viver em continência, e vimos também como ninguém quer essa solução. Agora devemos acrescentar: não é ideal nenhum! É o mínimo de coerência que se pede por algo já acontecido: o facto de ser uma só carne com outra pessoa.

O problema, porém, não acaba aqui. O Papa Francisco elevou a “magistério autêntico” (Acta Apostolicae Sedis, pág. 1071 e seguintes) a interpretação dos Bispos de Argentina. Portanto, fica a pergunta: deve um cristão obediência a este magistério?

3. O carisma da infalibilidade.

Vejamos, previamente, que tipo de assentimento pede a Igreja aos seus fiéis nos ensinamentos (magistério) que profere. Há dois tipos de magistério. Comecemos pelo chamado “magistério extraordinário”, que não é o caso de Amoris Laetitia. A Igreja considera o magistério extraordinário como revestido do carisma da infalibilidade. É «quando o pontífice romano proclama, por um acto definitivo, um ponto de doutrina respeitante à fé ou aos costumes». (CIC, n. 891). Deste primeiro esclarecimento já podemos dizer que o assentimento pedido se refere apenas às matérias de fé e costumes. Um cristão pode dissentir das opiniões de um Papa sobre todas as outras matérias. Não será nem mais nem menos católico por isso.

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que o carisma de infalibilidade só acontece mediante algumas condições. Não basta um Papa dizer que é assim. O Papa Bento XVI foi muito claro a este respeito: «Como é natural esta doutrina [da infalibilidade] tem de ser compreendida com grande exactidão e sem sair dos seus limites para não abusar dela nem a interpretar erradamente. […] Como já se disse, isto está sujeito a condições. Para todos os que têm responsabilidades na Igreja, significa que eles próprios têm de submeter-se com grande responsabilidade a essas condições. Não podem impor à Igreja as suas opiniões como doutrina, têm de se pôr ao serviço da grande comunidade da fé e ser ouvintes atentos da palavra de Deus. Têm de deixar-se dirigir e purificar por Ele para conseguir fazê-lo bem» (Deus e o Mundo).

Sobre estas condições, cito dois pontos de duas Constituições Dogmáticas: a) «Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido» (Dei Verbum, Concílio Vaticano II); b) «O Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de Pedro para que, por revelação sua, manifestassem uma nova doutrina, mas para que, com sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente a revelação transmitida pelos Apóstolos, ou seja, o depósito da fé» (Pastor Æternus¸ Concílio Vaticano I).

Finalmente, devemos fazer um terceiro esclarecimento. Um cristão só está obrigado a aceitar o magistério extraordinário? Não. Também deve assentimento ao magistério ordinário. «A este ensinamento ordinário devem os fiéis “prestar o assentimento religioso do seu espírito”, o qual, embora distinto do assentimento da fé, é, no entanto, seu prolongamento.» (CIC n. 892) Mas, como se deve imaginar, se o magistério extraordinário está sujeito a condições, com maioria de razão está condicionado o magistério ordinário. Quais são essas condições? É que seja um magistério ordinário universal, como ensina o capítulo III da constituição dogmática Dei filius. E “universal” não deve ser entendido apenas no aspecto sincrónico, mas diacrónico, isto é, que abarque diferentes épocas da Igreja. (Card. Joseph Ratzinger, Nota dottrinale illustrativa della formula conclusiva della Professio fidei del 29 giugno 1998, nota 17)

4. Legalismo ou posição crítica?

O esclarecimento que acabámos de fazer não passa de “legalismo” para um bom número de teólogos e católicos. E por detrás desta crítica costuma estar uma mesma atitude: quando a “lei” defende os seus interesses e pensamentos, ela é erguida em bandeira; quando não, evoca-se o chavão “legalismo”. Obviamente, não é para esses que eu falo. Não é possível argumentar quando continuamente se mudam as “regras do jogo”. A atitude acrítica destas pessoas é surpreendente. Para elas, o seu ponto de vista e o da Igreja coincidem sempre. Desconhecem que «a fé vem pelo ouvido.» (Rm, 10,17) Nunca apresentam um critério externo de avaliação. E a admoestação de São Paulo deixa-os sem cuidado: «Lembro-vos o evangelho que vos preguei, que recebestes, no qual sereis também salvos, se o conservais como vo-lo preguei: de outra forma tereis acreditado em vão.» (1Cor 15,1)

5. A questão fundamental.

A nota 351 da Amoris Laetitia e o ponto 6 dos Critérios de Aplicação dos Bispos da Argentina são magistério ordinário infalível? Não. Não existe universalidade. Esta posição é nova e nunca foi defendida no magistério da Igreja. Mas há mais: a posição está em contradição com as Palavras de Cristo e os magistérios anteriores. Ou seja, mesmo quem defenda que houve aqui apenas um progresso doutrinal deve atender às palavras de São Vicente de Lérins sobre as condições do progresso: «Mas isto, na condição de que seja verdadeiramente um progresso para a fé e não uma mudança, sendo que o que constitui o progresso é que cada coisa seja aumentada permanecendo ela mesma, enquanto que a mudança é quando se acrescenta a ela qualquer coisa vinda de fora». (Commonitorium, XXIII)

6. Conclusão.

O Papa Francisco é o nosso Papa. Um católico deve seguir o Papa em tudo aquilo que a Igreja lhe pede para o seguir. Nem mais, nem menos. E, exactamente por isso, neste caso, tenho de seguir a posição do Cardeal Caffarra. De outro modo teria de defender que o poder do Papa é absoluto e que está por cima dos Evangelhos e do Magistério universal da Igreja. A minha primeira obediência é a Cristo e à sua Igreja.

O Cardeal Caffarra morreu a 6 de Setembro de 2017. Um homem notável que serviu a Igreja como poucos e que morreu abandonado publicamente e angustiado por tantos o considerarem um inimigo do Papa: «é uma coisa que me amargura profundamente porque é uma calúnia». Talvez um dia a história lhe faça justiça. Talvez um dia a história reconheça que ele apenas cumpriu com o seu dever de Cardeal: aconselhar e advertir o Papa. Uma coisa, porém, é certa: Caffarra não foi mais crítico do que muitos que se dizem apoiantes do Papa Francisco.