O eminente constitucionalista Professor Doutor Manuel da Costa Andrade teceu alguns comentários avulsos e equívocos sobre a chamada «lei da eutanásia» num artigo de opinião no Jornal Público esta semana. O ex-presidente do TC secunda Marcelo Rebelo de Sousa na indeterminação dos conceitos (considerando erradamente o sofrimento isolado como critério) e no escrutínio demasiado dependente da subjectividade dos médicos. Refere ainda que a antecipação da morte como expressa na lei não é (por isso) exemplo de autonomia do doente, essa morte não é previsível nem se pode impedir que seja solicitada por um outro motivo qualquer.

De um ponto de vista médico-filosófico ou de ética aplicada, que apoiou as leis existentes em outros países, são – todos eles – argumentos equivocados. Por necessária concisão respondo brevemente a quatro dos mais importantes.

1 A «lei da eutanásia», em discussão, não diz respeito à consagração de um direito primevo e positivo a escolher antecipar a morte em qualquer circunstância. Nos mui liberais Países Baixos tentou-se recentemente fazê-lo, sem sucesso, pois a especificidade da lei da eutanásia naquele país não permite tal abuso. Desde logo porque os médicos não quereriam ter algo a ver com isso: a autodeterminação genérica de uma pessoa na antecipação da sua morte não é necessariamente uma «questão médica».

Os médicos são considerados, naquele país em especial, um garante da adequação e respeito da lei e pela lei existente. Quase 20 anos e milhares de pedidos depois, nenhum médico foi ainda condenado por má prática. Envergonha-me que o bastonário da minha Ordem aplauda a desconfiança dos médicos manifestada pelo Presidente da República.

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2 O conceito de morte medicamente assistida (MMA) utilizado é o que consta nas leis de outros países e que resulta de um amplo consenso entre os filósofos que apoiam a MMA desde há pelo menos 50 anos. Imaginemos uma mulher com 70 anos com um cancro do pâncreas terminal que é elegível para a MMA dado o sofrimento intolerável (e que já tinha passado pelos cuidados paliativos, como acontece em 70% dos casos, na Bélgica, a 80%, nos EUA – Oregon) mais uma doença incurável e fatal. Os médicos atestaram que a doente era competente para decidir. Como a doente tem artrite reumatóide grave e não pode segurar um copo (vamos supor que vai tomar barbitúrico com sumo de maçã por via oral) as alternativas são administrar a medicação letal por sonda gástrica ou por veia. Nos países que não permitem a «eutanásia» mas somente o «suicídio assistido», a doente tem que carregar num botão para pôr em funcionamento uma bomba infusora, e assim fazer com que a mistura entre no seu organismo. Qual a diferença – cumpridos os requisitos legais – entre ser o doente ou ser o médico a carregar no botão? Nenhuma. Imaginem que é um doente tetraplégico ou com esclerose lateral amiotrófica, que nem no botão consegue carregar. O que fazer? Se eu acrescentar que é mais seguro e eficaz (com menos complicações) ser o médico a administrar a medicação, mais suporte tem a opção da «eutanásia». É por isso que, nos países que disponibilizam ambas as opções subsumidas no conceito de MMA, como se pretende em Portugal, mais de 90% escolhe a administração da medicação letal pelo médico. A nossa lei faz bem em não complicar o que na prática é simples.

3 Alude-se a que a morte seja previsível. É manifesto que a lei não pretende fazê-lo, à semelhança dos «Benelux», Canadá e Austrália (em discussão), pois isto significa um grande afunilamento da base de aplicação da lei. Nos EUA só se permite que a morte seja antecipada a quem, sendo doente, tem um prognóstico de vida inferior a 6 meses (doente terminal). Os críticos desta opção não admitem que não estejam contempladas na lei todas as afectações de saúde graves que, na confluência da decisão do doente com o consenso médico do momento, sejam razoáveis contemplar. Como as resultantes de certos neuro-traumas e doenças neuro-degenerativas, por exemplo. Este foi também o entendimento no Canadá depois de uma dúvida inicial sobre limitar a aplicação da lei aos doentes terminais que veio a revelar-se inconstitucional.

4 O encadeado da lei é lógico. Veja-se por exemplo a lei do «testamento vital»: se o doente maior e capaz, nomeadamente devidamente esclarecido por um médico, se encontrar na situação lata x e se vir confrontado com um desfecho y decide-se por que o médico faça/não faça a atitude z. Por isso é errado falar do sofrimento isoladamente. É sofrimento mais lesão definitiva ou doença fatal. Mais o necessário escrutínio e consenso médicos: e sobre escrutínio fala-se no resto da lei toda! E que passa por médico orientador, especialista, psiquiatra e psicólogo eventuais, Comissão de Verificação, IGAS… Costa Andrade, aliás como o Presidente da República, esquecem que os médicos têm senso e know how para orientar um pedido de antecipação de morte. O confronto dos médicos com critérios de decisão clínicos sobre o fim de vida é diário. Não somos ingénuos ao ponto de não explorar todas as alternativas sobretudo em casos não consensuais, como o do atleta amputado (exemplo de Costa Andrade), que até pode voltar a andar, ou mesmo correr, nos dias de hoje.