Há um Portugal que não entra nos discursos, que não consta das narrativas políticas, que se desconhece nas redacções dos jornais, que não aparece na televisão, que não justifica debates acalorados. É um país menos escolarizado, símbolo de atraso civilizacional para uma elite que mede o progresso pela bitola das causas fracturantes. Um país estruturalmente pobre e sem horizontes, do qual ninguém se lembra, excepto quando o esquecimento a que foi condenado vira apodrecimento ruidoso, seja em Pedrógão Grande, num Interior em chamas, ou em Borba, numa pedreira esquartejada. Um país do qual ninguém quer realmente fazer parte e do qual quem governa se esquiva, não vá uma fotografia indiscreta entre os escombros associá-los ao descalabro. Um país abandonado onde as pessoas não existem politicamente. Porque não votam, porque não compõem uma clientela eleitoral, porque não integram o protesto organizado, porque são simplesmente indiferentes – não constam da equação de poder que define as maiorias parlamentares.

É comum os debates acerca do populismo e da ascensão eleitoral dos radicalismos focarem-se nos protagonistas políticos. Aponta-se o dedo acusatório a Marine Le Pen, estupidifica-se Donald Trump, repudiam-se as intervenções de Bolsonaro, censura-se a demagogia de Nigel Farage. E, sim, tudo isso é necessário. Mas esquece-se com frequência que há um outro lado dessas histórias: a base eleitoral e de apoio social destes protagonistas está a aumentar e está a dar-lhes vitórias. Não porque o povo seja estúpido ou porque os ideais do radicalismo estejam a gerar adesão ideológica, mas porque o vazio de representação política (cavado pelo status quo dos regimes) está a ser preenchido por eles. Porque toda uma massa de gente se cansou de não ser ouvida, de votar e não se sentir representada, de ser descartável.

É fácil cair na ilusão de que tudo isto é um problema dos outros porque, em Portugal, os extremismos não têm força efectiva. Mas, lá está, isso é continuar a olhar apenas para um lado da história. Do outro lado, Portugal já tem tudo: hoje e cada vez mais, este é um país de gente que foi esquecida. Onde o Estado falha no mais básico (segurança) e quem governa lava as mãos de responsabilidades. Onde o protesto existente está organizado e silencia quem não está alinhado com a agenda sindical. Onde a sociedade civil permanece fraca e submissa ao Estado. Onde a desconfiança nas instituições políticas é elevada, até porque semanalmente surgem novos exemplos de atropelos éticos por parte dos representantes políticos.

Seria injusto culpar o PS de António Costa por Portugal ser hoje um país dividido. Afinal, nada disto começou ontem. Mas este PS é responsável por acentuar essa divisão ainda mais e explorá-la no seu projecto de poder – desviando os recursos públicos para a satisfação das clientelas dependentes do Estado (que garantem a sua eleição) e negligenciando o resto do país, à mercê das cativações e da decadência dos serviços públicos. Aquilo que tantos elogiam como mestria tacticista é, na prática, uma forma de cinismo político – que só quer distância quando algo corre mal, que encolhe os ombros quando as culpas se apuram, que só dá de comer aos seus, que promove o ressentimento de uns contra outros, e que, para ficar do lado dos fortes, deixa cair os fracos. As sementes do populismo estão plantadas nesse distanciamento entre quem governa e os esquecidos, cada vez mais profundo e cada vez mais irreversível. É uma questão de tempo até algo rebentar.

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