O quadro atual geopolítico de elevada instabilidade na Europa merece contínua reflexão. As palavras que se seguem são motivadas pela escassez do uso da palavra “paz” desde que o primeiro-ministro britânico Boris Johnson esteve em Kiev, pelas palavras do Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, o qual prometeu fornecer armas a todos que quiserem e pelos seus contínuos pedidos ao Ocidente para fornecimento de armas e mais armas e pelas palavras proferidas por John Kirby, porta-voz do Pentágono (“O fluxo de armamento na região continua a um ritmo incrível”).

Sabe o que acontece às armas que supostamente são enviadas para a Ucrânia? Talvez poucos saibam. Embora algumas armas precisem de ser rebocadas por outros veículos (por exemplo o Howitzer M777) e sejam de fácil localização, outras podem ser transportadas como se de uma “mochila” se tratasse, pelo que é quase impossível rastreá-las. Devido à fácil portabilidade dos milhares de sistemas cedidos (drones “kamikaze”, FIM-92 Stinger, FGM-148 Javelin, AT-4 antitanque, NLAW – Next Generation Light Anti-tank Weapon –, munições…), o mais certo é apenas serem do conhecimento de quem os tiver nas mãos. Mas o leitor reconhece que as motivações/objetivos daqueles que vão ter esse equipamento nas mãos no presente, poderão não ser as mesmas no dia de amanhã? Quando o conflito terminar, sabe o que vai acontecer às armas enviadas, as quais continuarão a circular na Ucrânia? Sabe quanto poderão valer algumas dessas armas no mercado negro?

Mais grave é o facto de ser elevada a probabilidade de algumas dessas armas acabarem nas mãos de outros militares/milícias que não gostaríamos de ver armados! Os EUA, quem lidera o envio de armamento, sabe disso, mas não está preocupado com tal situação. Porquê? Porque, lamentavelmente, o principal objetivo dos EUA neste conflito é bem diferente daquele que aparenta ser (sugere-se a leitura do relatório da Rand Corporation, 2019: Extending Russia Competing from Advantageous Ground). Para os EUA, todos os meios justificam os fins: enfraquecer o seu arqui-inimigo militar – a Rússia. Essa tarefa pode tornar-se mais fácil, hoje, comparativamente ao que foi no passado, porque o Sr. Biden tem uma forte aliada – a Sra. Ursula von der Leyen. Sim, no passado… Na verdade, os EUA são especialistas em potenciar condições para esse tão desejado enfraquecimento. Poderíamos trazer aqui vários exemplos dessa estratégia, mas vamos, por agora, recuar até ao Afeganistão – um país com uma história complexa e repleta de conflitos e guerras – recordando a Guerra Afegã-Soviética, entre 1979 e 1989, para melhor compreendermos o real perigo do presente.

Recuemos até 1978

Nur Muhammad Taraki, um político comunista, chega ao poder. Nur Taraki assinou um Tratado de Amizade com a União Soviética, a 5 de dezembro de 1978, o qual expandiu enormemente a ajuda soviética ao seu regime. Simultaneamente, procurou impor um conjunto de medidas, as quais viriam a colidir com o perfil da sociedade: uma reforma agrária, a introdução de uma educação laica, alterações da lei de casamento (fim do casamento forçado), permissão da entrada de mulheres na política, entre outras. Estas medidas foram terrivelmente impopulares, tendo promovido desordem social e estimulado ainda mais a formação de grupos rebeldes, conhecidos como mujahidin, em diferentes partes do Afeganistão. No início de 1979, vinte e cinco das então vinte e oito províncias do Afeganistão eram consideradas inseguras, em consequência da resistência armada contra o governo.

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Apesar das repetidas tentativas, Nur Taraki não conseguiu convencer a União Soviética a intervir em apoio à restauração da ordem civil. A 14 de setembro de 1979 o seu governo é derrubado e o próprio líder assassinado a 8 de outubro. Hafizullah Amin ascende ao poder. A morte de Nur Taraki foi um fator que levou à intervenção soviética em dezembro de 1979. Com essa intervenção, Hafizullah Amin foi destituído do poder e Babrak Karmal (antigo vice-presidente) foi empossado, como novo presidente do Afeganistão. Consequentemente, os mujahidins declararam uma guerra santa (jihad) contra os soviéticos.

Provavelmente, teria sido um conflito de curta duração se os EUA não tivessem interferido, pois, em meados de 1980, as forças governamentais e os quase 120 mil soldados soviéticos detinham o controlo das principais cidades e vias de comunicação. Rapidamente, os EUA perceberam que seria mais interessante a manutenção dessa guerra por um longo período, pois tal teria um forte impacto na economia soviética. Para potenciar esse prolongamento, a Agência Central de Inteligência (CIA) financiou e armou os mujahidins, apoiando assim a jihad. Essa operação secreta viria a ser conhecida mais tarde como “Operação Ciclone” – uma das operações da CIA mais longas e dispendiosas, realizadas até hoje. Entre aqueles que lutaram contra os soldados soviéticos e foram financiados diretamente por dinheiro dos EUA encontrava-se Osama bin Laden. Este nome é-lhe familiar? Certamente que sim. Seria expectável que as motivações/objetivos de Osama bin Laden tivessem mudado tanto, com o passar do tempo?

Regressemos à atualidade

Os EUA não podem despejar armas sem rastreabilidade na Europa, com o consentimento da Sra. Ursula von der Leyen. Não é só com essas armas que se defende a Ucrânia e estas só atrapalham as negociações de paz. Os EUA sabem que nem todas as armas e munições fornecidas à Ucrânia vão ser utilizadas exclusivamente para combater o exército russo. Por exemplo, recentemente já foram identificadas nas mãos dos soldados chechenos. Num futuro não muito distante, intencionalmente ou não, podem ser utilizadas para servir outros fins. Estaremos preparados para o aceitar? Certamente não estaremos, assim como os EUA não estiveram, quando foram alvo de um surpreendente ataque suicida a 11 de setembro de 2001, orquestrado por Osama bin Laden, no qual quase três mil pessoas perderam a vida.

Sabendo o sofrimento que as guerras implicam e muitas vezes com consequências indetermináveis, muito poderia ter sido feito para se evitar mais este conflito, para além daqueles que estão a acontecer em África, no Médio Oriente e na Ásia Meridional (guerras civis, disputas territoriais, genocídios, terrorismo interno). Face às ocorrências que vinham a acontecer na última década na Ucrânia, país europeu, o então Sr. Jean-Claude Juncker (Presidente da Comissão Europeia entre 2014 e 2019) e agora a Sra. Ursula von der Leyen e os seus homólogos poderiam ter evitado este conflito através da diplomacia preventiva – na forma de mediação, conciliação ou negociação. Lamentavelmente, parece não ter havido interesse. Porquê? Agora, são forçados a agir, como se tal compensasse as vidas perdidas, a destruição, a pobreza, a fome e o sofrimento a que assistimos e iremos continuar a assistir nos próximos dias, meses ou anos, talvez.

A humanidade merece outra consideração.