Dois fantasmas pairam sobre a campanha socialista. Um é conhecido, foi muito mencionado nos últimos dias (na verdade nos últimos meses) e por isso dispenso-me de referir o seu nome. Mas há outro, menos recordado. Recordemo-lo:

Há pouco mais de 2 anos, a coligação no poder em Portugal percorria um estreito caminho, com apenas duas saídas aparentemente possíveis: demissão ou eleições.

Portas tinha pronunciado o célebre “irrevogável”, a oposição exigia a demissão do governo e eleições antecipadas, o país encarava (com um provavelmente expectante alívio) o fim da austeridade que tão duras penas impusera. Surpreendendo tudo e todos, o Presidente da República exigiu que os partidos que tinham assinado o programa de resgate então em curso – PS, PSD e PP – chegassem a acordo para a constituição de um governo de salvação nacional que assegurasse a conclusão, nas melhores condições possíveis, desse programa. Em contrapartida, terminado o programa de assistência financeira, realizar-se-iam as solicitadas eleições legislativas. Em Junho de 2014.

Os três partidos negociaram. Em vão. No dia 19 de Julho de 2013, Seguro anunciou que o PSD e o PP tinham inviabilizado o acordo. Nada feito, concluiu o secretário-geral do PS. Três dias depois Cavaco Silva anunciou que o governo de coligação continuaria, recomposto após a saída e reentrada do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros feito vice-Primeiro Ministro.

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A decisão de Seguro marcou a história recente do país. Pressionado pelos sectores históricos do partido, Soares, segundo constou, Alegre, segundo o próprio fez constar, e diversos socratistas, Seguro optou por não ceder: “o PS não muda as suas posições”. Não mudou nem mudou o governo, mas mudou ele após as europeias, por troca com Costa, o salvador.

Podemos interrogar-nos sobre como estaria o país hoje, caso Cavaco Silva tivesse convocado eleições antecipadas logo após a demissão de Vítor Gaspar (primeiro) e Paulo Portas (irrevogavelmente), em Julho de 2013; ou se tivesse havido acordo para a constituição de um governo de salvação nacional, para o que teria bastado o sim de Seguro. O mais provável, nos dois casos, é que o PS ganhasse as eleições – em 2013 ou 2014 -, e que António José Seguro fosse hoje o indiscutível primeiro-ministro (indiscutível mas não indiscutido).

Havendo eleições em 2013, por decisão exclusiva do Presidente da República, no auge da crise e com a generalidade das medidas mais duras em plena execução, a vitória do PS seria quase certa; como o teria sido em 2014, no rescaldo do final do acordo de assistência (e com uma saída limpa, como sucedeu) e com boa parte do eleitorado a atribuir ao PS a influência decisiva nesse resultado, o que Seguro e o “seu” PS não deixariam de reivindicar. Havia, é certo, o risco dos custos da austeridade lhe serem igualmente imputados; nada que um discurso claro sobre a resposta ao apelo presidencial, a premência da “salvação nacional” ou a corda patriótica tocada no coração dos portugueses, não resolvessem. E as cedências do PS no acordo de salvação nacional seriam tidas como resultado da “catastrófica governação” da coligação. Um eleitorado sedento de mudança proporcionaria com elevado grau de probabilidade a vitória a Seguro (ainda por cima insuspeito de alinhamento com o “outro” fantasma).

Tivesse Seguro ganho as eleições e colheria ele hoje os louros da recuperação económica, tímida embora. Seguro é nesta campanha o fantasma socialista de que pouco se fala, o que não deixa de ser curioso. Percebe-se a necessidade do partido de cerrar fileiras em torno do líder, mas Costa sabe bem que, por detrás da cortina nos bastidores do Rato, há um fantasma socialista à espreita. Um resultado desfavorável (até uma vitória escassa) e o fantasma sairá do canto escuro em que descansa e deixar-se-á ver à luz do dia – não necessariamente como alternativa de poder interno mas pelo menos como referência do que podia ter sido e não foi; e como lembrete de que nos partidos políticos só deve contar quem está no terreno, concorre a eleições ou discute cenários e opções de governação para o país.

E se esta fábula bem real pode assumir foros de parábola, será para dizer que essa é provavelmente a mais importante e frutífera faceta da governação de Passos Coelho e, sem dúvida, também da forma como fez oposição: o ter sempre feitos ouvidos moucos às sereias baronais que povoam as suas próprias águas partidárias. Vale o que vale, mas vale bastante.

PS. Tendo resistido à tentação de tratar das eleições gregas, não resisto ainda assim a fazer um comentário. O Syriza provou aquilo que há muito afirmo e escrevi: por radicais que sejam os partidos e as suas ideias, muito depressa se des-radicalizam quando exercem o poder. E se isso é verdade para as instituições (como os partidos) mais verdade ainda é para os indivíduos: a excepção  Varoufakis não passou disso mesmo, de uma excepção.

A razão para essa tão rápida normalização de partidos e pessoas que advogam e prometem a construção de um paraíso sobre a terra – e o desencanto (e desautorização) inevitável de quantos os invocam ou neles se revêm – é o facto de, cada vez mais, os cidadãos recusarem extremismos, radicalismos, soluções abruptas ou de ruptura. Simplificando e abusando da simplificação: cada vez mais a média dos cidadãos médios (da classe média) querem ordem, querem sossego, querem saber com o que contam, dispensam aventuras.

E os radicais, como era o Syriza e os seus dirigentes antes do acesso ao poder, depressa se dão conta dessa realidade. E das duas umas: ou se suicidam (politicamente) ou se “aggiornam”, isto é, procuram a via média, da contenção, da prudência e do rigor (se possível) para poderem continuar o seu caminho e guardar o seu poder. Que leitura fazer então dos últimos 6 meses e da degradação acelerada da economia grega? Se a solução que sair destas eleições, seja ela qual for (terá de passar pelo entendimento dos vários partidos com expressão, à excepção do Aurora Dourada), permitir ao país prosseguir no caminho das reformas, com rigor e com a legitimidade reforçada para cumprir o programa acordado com a União Europeia, então talvez o tempo perdido possa ser em parte recuperado e tenham resultado benefícios desta situação.

Mas recomenda-se que outros países não imitem a Grécia e poupem o tempo perdido escolhendo desde logo o caminho da cooperação entre as principais forças políticas (não, não estou a pensar em Portugal).

Entretanto, aguardaremos o desenrolar dos acontecimentos na Grécia. Os últimos tempos foram sobre os refugiados, mas também na saúde económica e política dos países europeus e da própria União se joga o futuro dessa crise de dimensões sem precedentes.