Se a minha memória não me atraiçoa, coisa que não garanto, a primeira vez que li a expressão “idiota útil” foi no livro Sefarad, de Antonio Muñoz Molina. O autor atribuía esta expressão a Lenine, referindo-se a todos aqueles que inadvertidamente ajudavam os bolcheviques, acreditando estar a trabalhar para um fim maior.  No caso de Muñoz Molina, o epíteto referia-se a Willi Münzenberg, um genial empresário comunista alemão que foi um importante propagandista do projecto soviético na Europa Ocidental e, ao mesmo tempo, incansável angariador de recursos, tanto para a própria URSS, como para as várias organizações comunistas assistencialistas que criou e geriu ao mesmo tempo que se entregava a uma luta ideológica sem trégua contra os nazis. Em 1940, quando chegou ao Sul de França desde Paris, ameaçado pelo avanço das tropas alemãs, foi executado com um garrote no meio de um bosque, supostamente pelo mesmo grupo de agentes soviéticos de quem esperava auxílio para passar a fronteira para a Suíça. Essa é uma das histórias que conta Sefarad.

Mesmo que Lenine nunca tenha realmente utilizado a expressão, nem Estaline mandado executar Münzenberg, coisas de que não existem provas fidedignas, a verdade é que a expressão passou ao léxico como referindo-se a uma pessoa que faz propaganda por uma causa sem conhecer os reais propósitos da mesma. Ludwig von Mises referiu-se a uma expressão semelhante – inocentes úteis – como sendo frequentemente usada pelos comunistas para se referirem àqueles liberais “confundidos e mal encaminhados” que simpatizavam com a causa.

Como atenuante à conduta dos idiotas úteis, devo advertir que ninguém está livre de, nalgum momento da sua vida, se prestar a esse papel, pelo que atirar a primeira pedra representa, de alguma forma, um dever doloroso que ainda assim, espero, lhes doa mais a eles que a mim. Isto, porque detecto uma nova vaga de idiotas úteis que é necessário travar, antes que, como qualquer esforço propagandístico bem-sucedido, o erro que propagam se alastre como uma praga e tolde o juízo das pessoas que desejam um país mais livre.

Refiro-me à ideia peregrina que por aí circula, a ver se pega, que aquelas pessoas, perdão, aqueles “privilegiados” que não foram afectados pela pandemia (economicamente, entendamo-nos, que o resto importa pouco para o argumento) devem ser tributados adicionalmente para compensar todos aqueles, menos afortunados, que viram os seus rendimentos mermados pela mesma. Ao contrário do que eu supus, o argumento agrada a alguns liberais por ser, no seu entendimento, uma forma de obrigar as pessoas que defendem o confinamento porque não sofrem com ele, bem pelo contrário, a exigir a abertura da sociedade e, assim, apoiar a liberdade de movimentos e a restauração do normal regime de garantias políticas anterior (como se este fosse exemplar).

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Tenho alguma dificuldade em perceber como liberal o argumento de utilizar a tributação como instrumento para obrigar os indivíduos a fazer o que quer que seja, desde não fumar ou não engordar, a sair de casa contra a sua própria vontade. Mas parece-me ainda mais incrível que, depois de décadas de intervencionismo, dos políticos que temos e das consequências estarem à vista de todos, ainda não tenham percebido as regras do jogo.

O governo, os governos, que o nosso limita-se a copiar as piores práticas do que se faz lá fora, precisam urgentemente de aumentar significativamente os impostos que cobram às pessoas (corrijo: à “população contribuinte” que é como o Newspeak diz que temos que chamar àqueles que pagam impostos, não vá a gente pensar que são pessoas de carne e osso) para sustentar o regime afogado em dívidas que, ora juram não ser necessário pagar, ora prometem que o fará “a Europa”. O argumento de que os “privilegiados” devem pagar aos outros não passa, pois, de uma desculpa para manter a máquina de ordenhar do Estado a pleno rendimento sobre uma população que já paga impostos como se de suecos, dinamarqueses ou finlandeses se tratassem. O facto de muita gente se encontrar desamparada, desprotegida e destituída, sem mais esperança que a de obter algumas migalhas do banquete de fundos públicos, é o que dará popularidade a esta ideia, ainda que a culpa resida, essencialmente, na sede de poder dos próprios políticos e no clientelismo perene das elites enriquecidas a golpe de Diário da República e que alguém terá que pagar. Como de costume, espera-se que a inveja aos “privilegiados” sirva de cobertura ao enésimo esbulho do monopolista da violência.

Mas, mesmo dando de borla ser o Estado e não os “privilegiados” quem decretou o infortúnio dos seus compatriotas, quando vamos aprender que esse dinheiro, que será meticulosamente extorquido pela trituradora fiscal, não vai servir para ajudar os menos afortunados? Se sabemos que o dinheiro que o Estado nos vai sonegando com a desculpa de que é para a Saúde, a Educação ou a Justiça não nos garante nenhuma das três? Se, mesmo naquele quinhão que é directamente gasto no funcionamento de hospitais, escolas ou tribunais, existe tal nível de despesismo, desperdício e clientelismo que frustra a ideia de que o Estado possa garantir esses serviços na quantidade e com a qualidade que se depreendia da facúndia com que esses propósitos foram gravados na Constituição? Como é que podemos, sequer, considerar que um esquema de redistribuição em massa de rendimentos, passando pela mão de pilha-galinhas engravatados, vai obrar alguma coisa que não seja mais corrupção, mais compra de votos, mais pobreza e um aumento da descoordenação dos indivíduos que ainda tentam viver em sociedade?

Com todo o respeito e, inclusivamente, admiração que tenho por algumas das pessoas que defendem isto, ou algo semelhante, tal proceder não passa de idiotez utilitária ao serviço dos principais responsáveis pela miséria generalizada: a classe política portuguesa, com pouquíssimas, e por isso mesmo, muito honradas excepções. O resultado, como sempre, vai ser que qualquer um que ainda tenha um emprego, dedique uma parte adicional do seu tempo a produzir para sufragar a factura acumulada por uma sociedade que, pedindo emprestadas as palavras de Bastiat, vive na ficção de que todos podem viver à custa de todos.