A 30 de Abril, o PCP emitiu um comunicado em que condena “a nova intentona golpista contra a Venezuela e o seu povo”. E lá vinha a ladainha do costume: as forças de extrema-direita, Trump, os “governos reaccionários do chamado grupo de Lima” e por aí adiante, chegando ao governo português, que também ele se comporta como um inimigo da “Revolução bolivariana”.

O PC sempre foi assim. Sempre foram estes os seus reflexos, sempre foi esta a sua língua de pau, que parece falada por uma máquina datando do paleolítico inferior. Nada mudou. A capacidade de não ver a opressão, a miséria e a frustração das vidas continua esplendidamente intacta. Tudo no mundo é, por assim dizer, desrealizado para se poder submeter a um esquema teórico puramente alucinatório. As confissões de um paranóico apresentam mais contacto com a realidade do que o PC. Numa coisa, de resto, coincidem por inteiro: a sua incorrigibilidade. O paranóico continuará a acreditar que é perseguido dia e noite por um homenzinho de papel, a sua crença permanecerá incorrigível. O PC, do mesmo modo, persistirá, aconteça o que acontecer, a viver num mundo em que as mesmas entidades se encontram eternamente em luta, e tal crença, sob a ameaça da perda de identidade, não será nunca corrigível. Entretanto, vão-se justificando e defendendo sem pestanejar os mais criminosos regimes. Não há no PC o mais vago vestígio de compreensão humana do outro. A doutrina serve precisamente para eliminar, a bem da “ciência”, tal possibilidade.

O Bloco apresenta, apesar de tudo, uma menor inflexibilidade. Aqui e ali vai corrigindo algumas crenças, sem se perceber muito bem, de resto, qual a exacta profundidade das correcções. Mas há velhos reflexos que, também eles, permanecem incorrigíveis. A 25 de Abril, por exemplo, deu a Mariana Mortágua e à sua família de afecto para pedirem a Santo António para mandar Bolsonaro para junto de Salazar, repetindo mimeticamente o desejo de morte que haviam censurado ao presidente brasileiro. Não é importante, disseram, depois de terem sido alvo de crítica, aquilo tinha sido meramente simbólico. É surpreendente ver gente que tanto gosta de “cultura” – e de quem a “cultura” gosta tanto – considerar irrelevante a dimensão simbólica das coisas. Até porque o símbolo, neste caso, o desejo da morte do outro, tem uma ilustre e bem documentada tradição: representa o desprezo revolucionário pelo outro, a redução do outro ao não-humano, necessária à sua posterior eliminação. Tal tradição permanece insusceptível de revisão no Bloco. Faz parte do seu imaginário, como gostam de dizer as pessoas que apreciam mostrar que têm um. Mais uns incorrigíveis.

A incorrigibilidade, é claro, é estimulada pelo meio ambiente. Que o diga o cartoonista António Antunes, que viu publicado pelo New York Times um seu desenho em que um cego Trump (com uma kipá) é conduzido por um Netanyahu em forma de cão (com uma estrela de David). O NYT retirou, sob uma chuva de protestos, o cartoon do seu site, admitindo o seu anti-semitismo, visível a todos menos ao mais ceguinho. Aparentemente, António Antunes é ceguinho, porque não viu (e acredito que não visse) anti-semitismo algum na coisa. A estrela de David, explicou, estava lá apenas para identificar o cão, já que nem toda a gente conhece Netanyahu por estas bandas. É a sua versão do “simbólico” do Bloco de Esquerda. Não explicou a kipá na cabeça de Trump, que não parece necessária para tais efeitos práticos.

O que é interessante não é o cartoon em si, que, se me é permitida uma opinião, seria absurdo censurar, o que é interessante são as condições que levaram o seu autor a não ver nele qualquer anti-semitismo. E percebem-se facilmente algumas delas, a mais notória sendo o reflexo instantâneo, partilhado por muita gente, de, à mínima crítica, invocar a diferença entre a condenação de Israel e a exibição de preconceitos anti-semitas. Acontece que esta distinção, à partida sensata, tende a desvanecer-se em grande parte dos casos concretos. A incorrigibilidade do anti-semitismo vive em grande medida da eventual plausibilidade aparente dos argumentos que suscitam a sua exibição. À pala da plausibilidade da distinção, António Antunes, que não duvido que, conversando consigo mesmo, não descubra em si qualquer anti-semitismo, produziu um cartoon anti-semita. Num certo sentido, foi apenas uma vítima do meio ambiente, que em tudo o levava a fazer o que fez. O que é triste é ver um cego a gozar com os ceguinhos.

Vivemos no meio de incorrigíveis. E viveremos sempre. Haverá sempre gente em quem o juízo político é sistematicamente toldado por uma tendência compulsiva à desrealização do mundo e à substituição deste por um universo imaginário de que não arreda pé, até porque tal universo se torna, a pouco e pouco, a garantia maior, e às vezes única, da sua identidade pessoal. E isso é algo contra o qual não se pode lutar.

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