“Eles têm a vida deles” é a “fórmula” mais ou menos banal para muitos pais descreverem a vida dos filhos, quando eles crescem. Não deixam de ser filhos, claro. Não deixam de trocar mensagens ou de fazerem telefonemas pontuais aos pais, obviamente. E não deixam de se encontrar com eles, com a frequência possível. Mas os filhos quando crescem, regra geral, afastam-se. Deixam de ser tão atenciosos e tão cuidadosos. Protege-os uma outra “fórmula” com que se justificam alguns distanciamentos que se vão aprofundando: “ele (ou ela) trabalha muito…”. Mas “se for precisa alguma coisa eu sei que posso contar com eles” completa o círculo com que se almofadam as reticências que se possam ter para com os bons filhos. Crescidos.

É claro que nos devíamos perguntar: “há bons filhos”? Há! São aqueles que cuidam, protegem e mimam os pais. Aqueles que são capazes de se colocar no lugar dos pais e perscrutam aquilo que se passa com eles. Aqueles que não os desconhecem, que não os desgostam e que não se ficam por confabulações mais ou menos infantis acerca  do que se passa com eles. Aqueles que dialogam acerca do que sentem com os pais, mesmo que protestem e reivindiquem, quando lhes falta pais. Aqueles que não se colocam num posição de criança, sempre à espera que a iniciativa seja do que for parta dos pais. E que não se põem  numa atitude quase exclusiva de cobrança acerca das falhas e das omissões que os pais possam ter tido como pais. Aqueles que aceitam ser interpelados, postos em dúvida ou, mesmo, até, justamente, repreendidos. Aqueles que são, espontaneamente, capazes de pedir desculpa. E aqueles que não esperam, sobretudo, receber para darem (muito) de si. (Na verdade, em tudo muito semelhante com o que caracteriza os bons pais.)

É verdade que os filhos, tal como os pais, falham, sem querer, um ror de vezes. Mas, tirando falhanços e desmazelos acidentais, os filhos não se repartem entre bons e maus filhos. Haverá maus filhos, claro. E esses serão uma imensa minoria. Mesmo que, a reboque de interpretações muito próprias que escondam a forma como se sentem pequeninos, magoam e têm omissões com maldade em relação aos seus pais. Mas, entre os bons e os maus filhos, existe, sobretudo, uma imensidão de muitos “pequenos polegares”. Filhos que são excelentes pessoas mas que acabam por se sentir, como filhos, um bocadinho desamparados. Que se preocupam com os pais. Que sentem o compromisso com as datas da família. E que aparecem sempre que são precisos. Mas que não têm com os pais uma relação adulta de filhos. Nem conversas verdadeiras, serenas e afectuosas com eles.

É verdade que  os pais evitam muito falar de bons filhos. Porque acham que os bons pais geram sempre bons filhos. Ora, nem os pais foram, em todos os momentos, bons pais, como  desejariam. Como os filhos também se podem ir “extraviando” da bondade, com a conivência dos pais, indo por uma deriva que os leve de “pequenos polegares” a maus filhos. Acontece. E nem sempre isso é um ónus exclusivo dos pais.

É, também, verdade que os filhos, depois de crescerem, assumem, muitas vezes, que, para efeitos de tudo o resto, são pessoas crescidas. Fazem escolhas e compromissos próprios de gente crescia. Mas, para efeito de relações familiares, são só filhos… “pequeninos”. Seja como for, é preocupante que muitos filhos crescidos assumam, quase com naturalidade, as relações difíceis que têm com um ou com ambos os pais. Como se não houvesse como as mudar. E, havendo, como se isso fosse um trabalho exclusivo dos pais. E que muitíssimos destes filhos declarem que não deixam de ter motivos para se sentirem um bocadinho vítimas de gestos que os pais vão tendo, que acabam por os magoar. Eu acho muito importante que sejamos capazes de reconhecer as falhas dos nossos pais. Porque isso nos gera o compromisso de não as repetirmos. Mas incomoda-me a forma como vejo tantos jovens adultos de dedo esticado a propósito da relação tensa ou difícil que têm com a mãe ou com o pai, como se isso justificasse tudo o que não fazem, sem terem o gesto adulto de assumir as quotas-parte dos seus falhanços e sem ajudar a consertar essas relações. E incomoda-me o discurso de vítima que muitos psicólogos alimentam acerca dos erros dos pais. Os pais falham; sem dúvida. Acertam muitíssimas vezes. Não são Deus na Terra, por mais que o desejem. São pais e, portanto, cabe-lhes – em nome da sabedoria e da bondade – ter “a iniciativa do jogo”, quando se trata de reparar coisas mal feitas que terão levado por diante. Mas é um bocadinho batoteiro que os filhos crescidos se coloquem, invariavelmente, em posição de vítimas, como se nada do que correu mal tivesse algumas das suas impressões digitais e como nada se pudesse conversar ou consertar. Como se os ressentimentos mandassem mais que o seu amor de filhos. Como se deles se esperasse, sobretudo, cobranças. Como se não lhes restasse senão começar uma família do zero, sendo pais à margem da  relação mal-amanhada que têm com os seus pais. Como se, ao contrário do que acontece com tudo o resto, os seus filhos não se educassem também com os exemplos que vêem os pais ter com os seus avós.

Nem nós somos tão bons pais como desejámos ser ou supúnhamos ter sido. Nem os nosso filhos crescidos são tão bons filhos como eles imaginam. Tal como eles em relação aos seus pais, também nós precisamos de ter admiração e orgulho pelos nossos filhos. E precisamos de nos reconhecer nas escolhas que fazem e nas relações que eles têm. E qual é o mal que seja assim? Qual é o mal de nos educarmos uns aos outros? Porque é que filhos crescidos têm de ser só passivos quando os pais se encolhem e se encolhem, como pessoas e como pais, e dessa forma anunciam que começam a morrer aos bocadinhos? E porque é que os pais não se podem “meter” na vida dos filhos, como se ter opiniões acerca deles os tornasse metediços? Se é tão fácil nos divorciarmos todos os dias mais um bocadinho, quando nos entregamos a formas oblíquas do silêncio – como os amuos, os murmúrios, as “bocas”, e outras coisas do género –, porque é que não nos passa pela cabeça que nos podemos ir divorciando dos filhos e eles de nós? Mas quem, no seu bom senso, pode aceitar que os pais aguentam tudo dos filhos (“porque são filhos…”), ou que os pais estão em condições de exigir comportamentos que eles próprios, como pais, não têm, “só” porque são pais?…

Às vezes, as famílias parecem um bocadinho como Santa Bárbara. Só nos lembramos delas quando “troveja”. Ora, uma família que se define desta forma e que aceita que as relações sejam, sobretudo, funcionais é uma família tristonha. Deprimidota. Que magoa e que desampara. Uma família assim não é nem uma festa nem uma alegria. Nem um colo do tamanho do mundo, como podia ser. Acresce que a maior parte das famílias são assim! Muito ao jeito de Santa Bárbara. O que faz com que os filhos e os pais, uns em relação aos outros, se sintam, mutuamente, como “pequenos polegares”. E quando estes maus vícios das boas famílias se instalam , os bons filhos tornam-se, aos poucos, maus filhos. E os bons pais, de desistência em desistência, maus pais. Que estranho e tão preguiçoso (não é?…) quando os pais e os  filhos façam assim quando só querem construir boas famílias!

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