Há uma classe de criaturas que povoa o nosso Portugal: “Os Medíocres”. Não são heróis nem vilões, para isso, seria necessário um vigor que lhes é desconhecido. Também não são propriamente inofensivos. O seu dano, embora lento e subtil, é por isso mesmo ainda mais insidioso. São, em suma, o torpor humano transformado em sistema, a apatia erigida a estatuto.

Não se pense, porém, que os medíocres agem por pura preguiça. Há, na sua mediocridade, método e astúcia. Sabem que a mediocridade é confortável, que não ofende nem inspira. O medíocre nunca é ameaçado porque nunca se destaca em demasia. Vive na penumbra da respeitabilidade destemperada, onde as ideias nunca são demasiado novas e os costumes demasiado velhos.

O medíocre destaca-se pelo talento da prodigiosa capacidade de fazer pouco, mas aparentar que fez o suficiente para merecer uma ovação. É o burocrata que, diante de uma pilha de e-mails e documentos — digitais ou empoeirados —, suspira com o dramatismo de quem carrega nos ombros o fado de Portugal. A dedicação que aparenta não passa de uma encenação, projetando aos olhos de quem observa a falsa ilusão da devoção que não tem. Na prática, as suas manhãs são consagradas à tarefa minuciosa de fingir limpar o teclado, enquanto aparenta teclar freneticamente algo de grande relevância. E as tardes, por sua vez, consagram-se à verificação cuidadosa de que esta ilusão permanece intacta. Entre um “like” lançado na madrugada e uma verificação vespertina dos comentários nas redes sociais, o tempo desvanece-se sem pressa e sem propósito.

Eles estão presentes em vários campos da nossa vida, onde a mediocridade encontra formas diversas de se manifestar. Do mundo empresarial às esferas do poder, das aldeias às cidades, do ofício das palavras ao palco da política, eles proliferam.

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No mundo empresarial, o medíocre “manager” ou administrador, de gravata impecavelmente ajustada, com decisões em barda por tomar e, com uma dissimulação cuidadosamente coreografada, eleva a delegação ao estatuto de sacerdócio. Das suas mãos não brota obra alguma, apenas o subtil deslizar de responsabilidades, conduzidas com a solenidade de quem manuseia um relicário sagrado. Os subordinados, fervorosos devotos da liturgia da inércia, replicam o gesto, passando as tarefas e as decisões de mão em mão numa procissão diligente, que só encontra o seu fim quando um acólito menos reverente à santa mediocridade, com algum zelo, decide finalmente concluí-las.

Faz pouco, decide ainda menos, mas procrastina com mestria, sustentando, com o ar solene de quem exala responsabilidade e competência, a glorificação magistral da sua própria mediocridade. E fá-lo com tal imponência que, num golpe de ironia, converte o que deveria passar despercebido num triunfo aparente, mascarado de virtude, como se a sua única conquista fosse, afinal, a glorificação da falha cuidadosamente disfarçada.

Na política, o medíocre, armado de palavras repletas de promessas, exalta o progresso com a mesma veemência com que se empenha em travá-lo. O fervor do seu discurso é feito dos votos de louvor e pesar que apregoa. Sabe bem que a ovação está sempre garantida, não pelo mérito da sua palavra, mas pela glória fugaz dos que no seu discurso nomeia e astutamente engrandece, para colher em seu nome os ecos do aplauso alheio. E assim, oculta-se, na espessa névoa do poucochinho, onde transforma a mediocridade em virtude e a insignificância em triunfo. A sua acção é inversamente proporcional à eficácia do que proclama, mas jamais concretiza. Enquanto proclama o progresso, prepara os entraves a qualquer mudança. Proclama grandes reformas enquanto perpetua os velhos vícios do sistema, mantendo intactas as amarras que jurou quebrar.

No fundo, é um mestre na arte de parecer avançar enquanto recua, travando com destreza tudo aquilo que aparenta defender. É a perfeita caricatura de si mesmo — imóvel e exagerado —, como um desenho sarcástico que eterniza os seus traços, risíveis, mas cuidadosamente mascarados, garantindo que a mediocridade que o acompanha nunca seja exposta. É, em suma, aquele que transforma o imobilismo numa arte refinada e eleva a estéril inoperância do seu quotidiano à dissimulada dignidade de uma filosofia que abraça como estilo de vida, repetindo-a com teimosia, como se o tempo jamais pudesse exauri-lo ou a realidade despertá-lo.

No campo da mediocridade jornalística, temos o “jornaleiro”, que é, sem dúvida, o mais hábil de todos, um verdadeiro artífice do nada, capaz de revestir o frívolo com a aparência de profundidade e de transformar o insignificante numa manchete de destaque. É o colunista que preenche colunas com diligência mecânica, tratando banalidades com pompa e circunstância. É o escritor de editoriais que enreda o leitor num labirinto de palavras ornamentadas, confundindo prolixidade com erudição, enquanto mascara a ausência de ideias sob camadas de frases sinuosas, onde o sentido, inevitavelmente, se perde. Mas é o crítico quem se destaca nesta trupe “jornaleira”, elevando-se não pelo seu próprio brilho, mas pelo prazer de desmontar o labor alheio, erguendo a sua vanglória sobre os escombros daquilo que destrói. Estes, ao contrário dos outros, não temem o novo, desde que o novo seja suficientemente velho para parecer familiar.

Mas, a mediocridade também se manifesta, com particular fulgor, nas tertúlias que decorrem no café da aldeia. Ali, os medíocres exibem as suas opiniões como os pescadores que descrevem, com entusiasmo, o tamanho descomunal do peixe que nunca apanharam. Falam com grande autoridade sobre temas que não dominam e discutem a economia como quem ajusta o orçamento da mercearia. Aplaudem o passado, porque o passado já não os incomoda, e desconfiam do futuro porque este é incerto.

Nas cidades, apresentam-se bem trajados, circulam por escritórios climatizados e dominam com mestria a arte de parecerem atarefados. Transportam o laptop e dedicam-se a responder a e-mails e a participar em conversas irrelevantes nas redes sociais, com uma diligência que faria corar de vergonha o mais meticuloso dos monges copistas. Já em casa, à mesa de jantar, não perdem a oportunidade de se gabar do seu “árduo” dia de trabalho, enquanto, num tom lamuriante, se queixam do trânsito, do governo e do preço dos tomates que, ironicamente, parecem faltar-lhes, como se tudo isso conspirasse contra a sua suposta grandeza.

Independentemente da profissão, credo ou estatuto social, os medíocres partilham entre si uma aliança silenciosa, um pacto que garante a sua sobrevivência. Protegem-se uns aos outros com devoção, porque sabem que a exposição de um ameaça todos. Este é o seu seguro de vida, a barreira que os resguarda do escrutínio e mantém intacta a ilusão de mérito. Na hierarquia invisível da mediocridade, impera o princípio de que a crítica é perigosa, não porque revele falhas, mas porque pode abrir brechas no muro de complacência que os mantém a salvo. Assim, louvam-se mutuamente em público, ignoram os erros uns dos outros e sustentam, com lealdade, o equilíbrio precário que lhes permite prosperar na penumbra. Afinal, para o medíocre, o verdadeiro perigo não é a sua falta de mérito, mas a possibilidade de que alguém ouse apontá-la.

No entanto, o medíocre fascina, é um sobrevivente, uma criatura adaptada à mediocridade do nosso mundo. Nunca se lança ao abismo, mas também nunca escorrega na borda. Vive uma vida mediana, morre de uma morte mediana e deixa um legado mediano. Talvez, no fundo, os medíocres sejam os verdadeiros génios do nosso tempo, porque perceberam que o esforço é uma invenção perigosa e o brilho, uma condenação anunciada.