Os humanos são uma espécie versátil, que se desloca sobre dois membros e que, de forma engenhosa, comunica entre si através de gestos, da mímica e de palavras. Consoante as latitudes e a forma como se foram espalhando pela Terra, a linguagem dos humanos acabou por ter várias expressões sonoras, onde predominam ora os sons mais abertos e adocicados ora sons dominados por fonemas carregados de arestas, mais “ásperos” e agressivos. Também por causa isso, os humanos ligam-se em grupos, através dos quais se protegem, ou com os quais rivalizam, competem e, por vezes, se expandem, conquistando mais preponderância e mais território. E movimentam-se, migram e tendem a ser nómadas, nalgumas circunstâncias. É verdade que a sua inteligência os transforma em predadores temíveis. Mas a sua fragilidade inata faz com que se liguem, com profundidade, através de vínculos que levam a que transformem uma necessidade básica numa experiência indispensável a que, todos eles, de forma transversal, chamam amor.

A forma como os humanos cuidam das suas crias não se distingue, a olho nu, de muitas outras espécies que lhes são próximas ou, aparentemente, semelhantes. Amamentam-nas. Brincam com elas. Advertem-nas. E têm uma paciência que chega a encantar, tal é a forma como lhes permitem que sejam audazes e curiosas. E como deixam que elas vão do grito à palavra que, tudo o indica, utilizam de forma expressiva, comunicando entre si de modo inteligente e, progressivamente, mais complexo.

É verdade que as crias humanas utilizam, por vezes, formas estridentes para se expressarem. Esbracejam, gritam e ficam vermelhuscas. E, em muitas circunstâncias, levantam a mão aos seus progenitores, amuam e dirigem-lhes palavras ásperas com que parecem dizer-lhes que não gostam deles. E, nesses momentos, iniciam uma espécie de dança ritual em que batem com os pés. E parecem ser tão tomadas de mau génio que, pela forma como os pais se dirigem a elas, leva a supor que lhes dizem que elas parecem ser “levadas do diabo”.

Acontece que os humanos, sempre que não se distraem, competindo entre si de forma violenta, se foram diferenciando através do raciocínio lógico, da capacidade de se abstraírem e de saberem olhar em perspectiva. E, apesar de todas as limitações que revelam em situações quase desconcertantes, são capazes de se comoverem, de acederem à beleza e de criarem utensílios e técnicas que os tornam mais capazes e mais susceptíveis de multiplicarem os seus recursos. Por isso mesmo, apesar da sua natureza autónoma e diferenciada, os humanos — por influência das competências que desenvolveram — criaram uma espécie de subgrupo, supostamente, mais diferenciado a que chamaram Millennials. Iguais em quase tudo aos seus  antepassados. Mas com mais recursos económicos e mais competências sociais. Que procuram mais informação sobre as suas crias. E lhes dedicam mais tempo e mais recursos técnicos, a ponto delas passarem a ser descritas, em muitas circunstâncias, como nativos digitais. O que faz com que as deixem mergulhar nas maravilhas da técnica. E leva a que utilizem inúmeros artefactos — como televisores, computadores, tablets ou telemóveis — com que as entretêm e as tentam sossegar. De manhã até à noite. E, sobretudo, ao jantar.

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Ao contrário dos seus antepassados, que entendiam o corpo como o utensílio premium de todas as aprendizagens, o movimento como a força motriz com que se liga o dentro e o fora, e  a vista na ponta dos dedos como sinónimo ora de curiosidade ora de perigo, os Millennials acham que se pode aprender quieto, calado e com a ponta dos dedos, e que isso não só não torna as crianças mais abelhudas como envaidece os pais, a ponto deles entenderem que elas já nasceram a tratar os écrans e a tecnologia por tu, com uma versatilidade que os regozija. É claro que, ao contrário do seus antepassados, as crias millennials não trepam às árvores, não saltam em poças, não correm numa gritaria desenfreada, nem fazem estardalhaços. Nem se sujam, a ponto de ficarem irreconhecíveis. E, por mais que utilizem o indicador e o polegar duma forma que faz recordar os seus primos genéticos, os símios, parecem ter limitações na sua motricidade. Quer quando não usam o corpo para ir ao encontro dos outros. Quer quando utilizam um lápis ou o desenho de forma rudimentar. Como quando vão da informação ao conhecimento de formas demasiado clonadas umas nas outras.

Seja como for, fica-se com a sensação que pais e nativos digitais veneram uma espécie de entidade totémica, com um valor quase equiparável ao de um Deus, que tratam como Google (“Deus-Google”, chamemos-lhe assim.) Ou, ainda, que usam a língua materna pejada por smiles, acrónimos, imagens, emojis e abreviaturas – que há quem equipare à categoria de um dialecto ou de uma língua semelhante ao esperanto, o internetês – dando à linguagem simbólica uma configuração de código de morse que chega a assustar. E que as limita muito! Porque a imagem e a palavra não são bem a mesma coisa. E porque o casamento das duas – numa metáfora, por exemplo – nos recorda que os nativos digitais se podem tornar, facilmente, crianças com necessidades educativas especiais, para as quais os pais, sem se darem conta, se arriscam a trabalhar, todos os dias.

Na verdade, os pais millennials arriscam-se a imaginar que os nativos digitais crescem mais com técnica do que com alma, o que os leva a não gritar, a não dizer que não, a tentar explicar tudo e mais alguma coisa, a sossegar e a silenciar. Que, valha a verdade, pode fazer dos nativos digitais crianças altamente competentes. Mas que corre o risco de os tornar, nalguns aspectos que caraterizaram a astúcia dos seus antepassados, inacreditavelmente limitados, ao contrário daquilo que mais querem os seus pais.

Seja como for, os nativos digitais são quase venerados. Daí que se torne incompreensível que haja quem os considere, até, como pequenos ditadores. Dificuldade que mais facilmente os pais millennials tentam esclarecer através de tutoriais e coaching para pais do que através do sexto sentido, que os seus antepassados foram evocando, ou duma sabedoria transgeracional. O que faz com que, inadvertidamente, os nativos digitais se aproximem mais da inteligência artificial do que da inteligência, propriamente dita.

E, depois, há demasiados dias, os nativos digitais vivem ligados à internet, por longos períodos de tempo. Estudam, comunicam, passeiam, namoram e brincam sem saírem do mesmo lugar. Havendo quem, a certa altura, os imagine como uns verdadeiros multifunções, capazes de realizar — com sucesso — inúmeras coisas ao mesmo tempo (sem que, todavia, pareçam estar atentos até ao mais fundo de si e sem que se entreguem a nenhuma com desassombro e entusiasmo). Como se fosse possível estarem on-line por longuíssimos períodos, ao longo de um dia, e, ao mesmo tempo, fossem capazes de ser crianças e adolescentes, com a mestria que os da sua espécie foram capazes de ter ao longo dos séculos. Como se, ao contrário de todos os outros hominídeos, os nativos digitais fossem mais capazes, mais inteligentes e, claro, fossem, inequivocamente, multitasking.

Acresce quem os nativos digitais talvez não sejam tão seguros, tão audazes, tão  expressivos e tão sociáveis como se imaginaria. O que nos traz a urgência de resgatar estas crianças para um desenvolvimento saudável, sem o qual podem, até, ser particularmente hábeis, no plano do digital, mas se arriscam a ficar aquém de tudo aquilo que, do corpo ao sonho, uma pessoa – de tanto lidar com isso, todos os dias – é capaz de fazer. Porque é precioso que sejam mais capazes que nós em muitos aspectos. Mas é urgente que não deixemos que elas se percam de tudo o que temos de melhor que elas de que parecem afastar-se.