O Gulag da fase madura assentava em comida e privação de comida. É esclarecedor que a história do comunismo esteja sempre remeter-nos para isto: escassez ou ausência de alimentos” 

Martin Amis, “Koba, o Terrível” (pág. 76)

1 E de repente, o Partido Comunista Português (PCP) informou o país de que pretende mudar de líder através de um comunicado à imprensa emitido às 21h deste sábado. A suposta transparência do PCP vai ao ponto de disponibilizar uma extensa biografia do nome proposto para suceder a Jerónimo de Sousa como secretário-geral: Paulo Raimundo.

E de repente os écrâns dos nossos canais de informação foram invadidos por especialistas políticos, profundos conhecedores da história do PCP. Durante horas, os portugueses levaram uma verdadeira lição sobre o facto extraordinário que é o PCP mudar de líder, sobre o funcionamento basista do PCP e, acima de tudo, a importância do PCP para a democracia portuguesa.

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Depois de horas a fios de um debate (muito pouco plural), só havia uma conclusão a retirar: o PCP ‘só’ pode ser partido mais democrático do nosso sistema eleitoral. O facto de ter sido apenas o 6.º partido com mais votos nas últimas eleições (4,30%) e de apenas ter 6 deputados terá sido apenas um acidente de percurso.

2 Lamento mas o que aconteceu no sábado é mais um exemplo do carácter profundamente anti-democrático do PCP — e mais uma prova de que como os comunistas, extremistas por idelogia e por natureza, continuam a ser tratados de forma benevolente pela comunicação social.

Quem propôs o nome de Paulo Raimundo? Quem vai propor o seu nome ao Comité Central do próximo dia 12 de novembro? Quando e como é que o Secretariado e a Comissão Política do Comité Central começou a discutir a sucessão de Jerónimo de Sousa? Se Jerónimo de Sousa afirmou este domingo que não houve “unanimidade” na reunião do Comité Central em que foi marcada a votação do próximo 12 de novembro, quem criticou a escolha de Raimundo?

Nenhuma destas perguntas tem resposta num partido com o PCP. Porquê? Porque a transparência, que é uma palavra-chave em democracia, não faz parte do dicionário comunista.

Veja-se, por exemplo, a forma como Paulo Raimundo será eleito. Enquanto nos partidos democratas (e nas eleições em Portugal e qualquer outros democracia consolidada), o voto é secreto e feito em urna (para ser exercido de forma livre e sem qualquer espécie de pressão), os comunistas vão eleger o novo secretário-geral de braço no ar.

A ideia é promover a unidade e fazer do ato uma decisão coletiva e não uma soma de decisões individuais.

3O dicionário comunista gera fascínio — a começar nos jornalistas. Os jornalistas adoram mistério porque faz parte da sua natureza descobrir e revelar segredos. Se a isso juntarmos um léxico obscuro e hermético, maior é o interesse jornalístico — que o PCP explora muito bem, refira-se.

O paradoxo disto é que o mistério e o segredo que os meus colegas jornalistas admitem no PCP, não admitem nos outros partidos. O secretismo, a opacidade e o obscurantismo são tolerados nos comunistas mas são combatidos no PS, no PSD, na IL ou no Chega. Uns (cada vez mais raros) por fervor ideológico, a maior parte por um suposto e alegadamente obrigatório respeito histórico pelo papel dos comunistas na luta contra a ditadura.

É a velha história de que os portugueses devem estar agradecidos aos comunistas pela “luta”. Os jornalistas, em especial, devem estar gratos pela luta do PCP pela liberdade de expressão e de imprensa — como os jornalistas que foram saneados do Diário de Notícias e de outros jornais tomados pelos comunistas durante o período de 74/75 bem se recordam.

O facto de todos os partidos comunistas terem construído sistemas totalitários de repressão e de perseguição política, desrespeitando qualquer noção do que é a liberdade de expressão, a liberdade de associação e a liberdade política — tudo isso será certamente um pormenor irrelevante que não apaga uma boa história da carochinha.

4Como também tem de ser obrigatoriamente irrelevante o facto de os comunistas portugueses terem colocado o país à beira da guerra civil em 74/75 e que tenham estado no princípio do golpe de Estado do 25 de Novembro que foi derrotado pelas forças militares apoiadas pelos democratas.

O mesmo se diga sobre a sua verdadeira natureza marxista-leninista que o PCP voltou a mostrar com a defesa inequívoca do seu passado soviético com a Guerra da Ucrânia — recuperando inclusive a velha máxima soviética de que a Ucrânia não é um país e não tem cultura própria.

Na prática, o que o PCP (com a ajuda de alguns colegas meus) quer nos convencer é simples: os comunistas portugueses são verdadeiramente especiais. São tão especiais, tão especiais que, se alguma vez ganhassem umas eleições legislativas com maioria absoluta, nunca fariam o que os comunistas fizeram em qualquer parte do mundo em que tomaram o poder: ditadura, totalitarismo, polícia política, perseguição, estatização da economia e da vida coletiva, e fome, muita fome.

O facto de o PCP apoiar publicamente ditaduras como a China, Cuba ou Coreia do Norte é apenas uma daquelas exuberâncias que não tem a mínima importância.

Os comunistas portugueses são especiais, como já sabemos. São tão especiais que até deviam ser estudados pela ciência para se descobrir a razão da sua verdadeira especificidade.

Como dizia a atriz Rita Blanco no outro dia no podcast de Francisco Pinto Balsemão, ser de esquerda é não suportar “o sofrimento dos outros”. Logo, as várias dezenas de milhões de cidadãos indefesos que morreram à fome ou foram perseguidos e assassinados durante as ditaduras comunistas instauradas na Europa, Ásia, África e América Central e Latina não passam de um acidente histórico — que só por mero acaso se repetiu até à exaustão.

5 Diz Manuel Carvalho no Público que o PCP é uma espécie de “folclore que não faz mal a ninguém” — que continuará a tocar a sua cassete entediante com Paulo Raimundo. Não será bem assim, pois a sua força nos sindicatos ainda é um dos grandes males que assola a democracia portuguesa.

Por duas razões simples:

  • porque a real representatividade dos sindicatos, tal como das confederações patronais, é cada vez menor. Além de não terem praticamente nenhuma implantação no setor privado, têm vindo a perder de forma sólida e crescente a influência no setor público;
  • porque a CGTP, a confederação sindical dominada pelo PCP, é uma verdadeira força de bloqueio a qualquer mudança de organização no setor público.

Só há uma solução para resolver este problema: a morte ou a irrelevância do PCP. O caminho do declínio é uma inevitabilidade à qual os comunistas portugueses não vão conseguir fugir.

PS – Miguel Alves, secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, resolveu dar uma entrevista ao JN/TSF para tentar explicar o adiantamento de 300 mil euros a uma empresa sem histórico e com um curriculum de obras falso. Além de explicações pouco convincentes e de garantir que não é “bandido nem tolo”, Alves resolveu jogar a cartada da vitimização, insinuando que estava a ser perseguido pelos jornalistas por estar “fora daquela corte natural, fora daquele conjunto de pessoas mais associadas à tal bolha mediática” e por existir “um certo preconceito com Caminha”.

São argumentos extraordinários e, como diria a Rita Blanco, um pouco “parvos”. Miguel Alves nasceu em Lisboa e foi viver para Caminha em criança, estudou em Coimbra e esteve a trabalhar na capital entre janeiro de 2006 e 2013. Primeiro, como adjunto de António Costa no Ministério da Administração Interna e na Câmara Municipal de Lisboa. E entre 2009 e 2013 foi diretor jurídico da Geocapital Investimentos Estratégicos, S.A, pela mão de Diogo Lacerda Machado.

Portanto, Miguel Alves não é um pobre coitado de um autarca que vem da província para o Governo. Alves pertence à “corte natural” de António Costa e de Lacerda Machado. Melhor posição é impossível para quem quer singrar no PS.