Devo a uma entrevista de Vasco Pulido Valente ao Público, em 2018, a leitura de Elena Ferrante: “Devia ser uma leitura obrigatória para todos os europeístas. A União Europeia hoje é um veneno e vai acabar.” Quatro anos depois, o europeísmo parece estar, felizmente, cada vez mais fora de moda, mas a tetralogia de Ferrante continua a valer a pena: não é apenas o retrato sociológico de Nápoles e de Itália que ali encontramos, é também a história da Europa do século XX. Enquanto nos distraímos com as aventuras de Elena Greco e Lila Cerullo, é quase com surpresa que nos apercebemos de como a sociedade europeia mudou tão rapidamente e tão profundamente. Foram as circunstâncias de vida dos mais pobres, o crescimento do estado e das suas funções sociais, as condições sanitárias e laborais, o modo como a família se organiza e os papéis sociais do casal, a autoridade masculina e a violência sobre mulheres e crianças, as desigualdades sociais que davam sentido ao mundo.

Essas mudanças encontram-se simbolizadas no momento que dá forma à narrativa de Ferrante: depois do ensino primário, Elena continua os seus estudos, enquanto Lila, de uma família mais pobre de sapateiros, tem de trabalhar com o pai. É esta diferente sorte que determina o futuro das duas amigas: a escola representa a possibilidade de sair do mundo de pobreza, violência, casamentos infelizes, filhos e lides domésticas que conhecem. Os estudos e, em particular, a universidade significam emancipação, liberdade, uma vida melhor. Elena sai do bairro onde nasceu e deixa, depois, Nápoles; estuda na universidade, torna-se escritora. Liberta-se do velho mundo.

É importante notar como essa emancipação se traduz numa dimensão linguística: no bairro fala-se o napolitano, com violência, de forma ríspida, aos gritos. Sair do bairro é também sair desta linguagem e usar o italiano, pronunciar claramente as palavras, comunicar com gentileza. Regressar à família, nas férias ou no final do curso, é regressar a um mundo que se expressa de modo diferente e no qual Elena deixa de se sentir confortável.

Encontramos o mesmo sentimento em Annie Ernaux, num livro republicado muito recentemente entre nós: Um lugar ao sol, seguido de Uma mulher. Recuperando a memória e a história dos pais, Ernaux recorda o esforço feito para que ela estudasse, tivesse uma vida melhor, fosse feliz:

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“O seu desejo mais profundo consistia em proporcionar-me tudo o que ela nunca tivera. Mas isso representava um tal esforço de trabalho, tantas inquietações com o dinheiro e uma preocupação com a felicidade das crianças tão nova em relação à educação de outrora.”

De origens humildes na Normandia, os pais de Ernaux promoveram a sua própria luta: o pai não queria a vida dura da terra, nem permanecer operário e a iniciativa da mãe levou-os à abertura de um café-mercearia, à possibilidade de ser proprietário, de sair bem na vida. Mas foi uma vida de trabalho e esforço que lhes permitiu ascender apenas um pouco socialmente. Já o estudo e os livros da filha permitiram a sua emancipação, e é quase com horror que Ernaux reconhece ter-se tornado burguesa:

“No comboio de regresso, no domingo, tentava distrair o meu filho para que estivesse quieto, os passageiros de primeira classe não apreciam o ruído, nem as crianças irrequietas. De uma assentada, com espanto, “agora tornei-me realmente uma burguesa” e “é demasiado tarde”.”

Também aqui a escola conduzirá a um afastamento – a sensação de que o pai pertence a um mundo diferente do seu – que se manifesta na linguagem: ainda que o pai se esforçasse por não usar o patoá, a única língua dos seus pais, não falava um francês impecável, falava com a boca toda; e não gostava que a filha o corrigisse, ficava infeliz. Quanto à mãe:

“Tinha vergonha das suas maneiras bruscas de falar e comportar-se, ainda mais vivamente pelo facto de reconhecer o quanto nos assemelhávamos. Censurava-a por ser aquilo que, enquanto emigrava para um meio diferente, me esforçava por não parecer.”

Ascender socialmente significou então uma separação familiar que corresponde a uma separação de classe, mas em que a linguagem se torna mais relevante do que o dinheiro: “Tudo o que se refere à linguagem é, na minha recordação, motivo de rancor e de troça dolorosa, mais do que o dinheiro.” Afinal, a linguagem revela uma maneira de ver e estar no mundo.

E talvez seja esta a grande tensão da modernidade: a sua promessa de libertação e progresso, de que a escola é o principal instrumento, promove uma rutura interior por exigir a recusa de certas raízes – aquelas que não estão de acordo com o novo mundo, como os valores que decorrem da pobreza ou da ruralidade, o modo errado de nos expressarmos, as coisas que não deveríamos dizer ou pensar. A modernidade acaba por se transformar, desse modo, em ideologia do progresso, impondo-nos a vergonha e a recusa desse outro mundo – para que, um dia, toda a sociedade seja da mesma opinião. Reconhecer esta tensão e a divisão social que gera é, por isso, fundamental para compreender politicamente a Europa e o mundo ocidental de hoje.

Ernaux, apesar de ter cedido inicialmente à pressão do seu novo mundo, não cortou as raízes familiares e o seu livro torna-se especialmente comovente quando descreve como acompanhou a mãe durante a demência: “As pessoas que a tinham conhecido escreviam-me, “ela não merece isto”, achavam preferível que a “libertassem” depressa. Talvez, um dia, toda a sociedade seja da mesma opinião.”

PS: Um dos nomes mais relevantes do feminismo contemporâneo é o de Camille Paglia, que tem sido uma voz muito polémica contra as novas vagas de ativismo marcadas por vitimização e limitações à liberdade de expressão. Na sua coletânea de textos Mulheres livres, homens livres, Paglia debruça-se sobre muitos dos tópicos atuais e apresenta uma análise particularmente interessante sobre como as alterações sociais do último século afetaram a mulher e justificam os seus descontentamentos.