É absurdo falar-se em censura do humor. Um deputado chamado João Galamba costuma fazer graçolas alusivas às vítimas dos incêndios e não há quem o impeça. Há dias, a jovem promessa socialista respondeu no Facebook a alguém que discordava da cartilha oficial acerca do tema: “Isso deve ser mesmo difícil de digerir. Olhe, vá à farmácia e compre uns medicamentos para a ansiedade”. Depois de um argumento assim, a sofisticação está garantida, e a conversa pode saltar das “redes sociais” para o Parlamento e as televisões que albergam o portentoso raciocínio do sr. Galamba.

Convém notar que aconselhar a compra de medicamentos para a ansiedade com o objectivo de ajudar à digestão é clinicamente discutível. É também uma ligeira variação das recomendações de Rennie ou Kompensan, populares remédios para a azia e, hoje, popularíssimos instrumentos retóricos. Num estudo superficial, apurei que cerca de 87,3% das críticas às minhas crónicas se resumem a preocupações com a hipotética acidez do meu estômago.

Afirmo que o PS é um refúgio de trapaceiros sem paralelo no hemisfério Norte? Tomo Rennie e, juram-me, isso passa. Opino que o “caso” do Montepio é uma golpada inscrita numa longa tradição de golpadas similares? Ingiro Kompensan que a coisa vai ao sítio. Sugiro que ambos os candidatos à liderança do PSD representam a abdicação da alegada “direita” ao sistema que nos arruína e enxovalha? Dissolvo um Alka-Seltzer e curo-me. Arrisco que a dona Catarina Martins (para quem, aliás, os resmungos da oposição representam a “azia da direita”), em décadas de relativa existência, nunca produziu a sombra de uma ideia sequer discutível? Atafulho-me de Gaviscon e tudo se resolve. Por algum motivo, inúmeros portugueses convenceram-se de que mostrar cuidados com o refluxo gástrico dos restantes constitui uma maneira infalível de encerrar, e vencer, qualquer discussão.

Será conspiração das farmacêuticas? Duvido. Do que tenho a certeza é da eloquência vigente nas classes dirigentes e nos seus acólitos não estar exactamente ao nível de um Lincoln ou de um Disraeli. Mas está, sem tirar nem pôr, ao nível de dois, ou três, Antónios Costa. Ou quatro. Ou cinco. Ou tantos quantos os sujeitos que tomaram conta disto e, entre arrotos e gargalhadas, desceram o debate público aos abismos dos debates de futebol. Não me refiro, evidentemente, aos coitados que soltam atoardas na taberna a pretexto da bola: refiro-me aos furiosos que o taberneiro põe na rua e arranjam poiso na CMTV ou nos gabinetes de “comunicação”. A “azia” omnipresente nas considerações dos maluquinhos dos clubes, grau zero do pensamento e recurso estilístico que um orangotango se embaraçaria de usar, contaminou os maluquinhos dos partidos. No fundo, trata-se de um símbolo da indigência mental em curso e a confissão de que se é bronco e não se disfarça.

Houve um tempo, não muito remoto, em que os broncos disfarçavam. Ou pelo menos tentavam. O “eng.” Sócrates, por exemplo, ainda procurava dissimular as suas extraordinárias deficiências com os tiques que, na inocência dele, julgava próprios das pessoas ilustres: passear cursos (que não frequentou), citar livros (que não leu) e assinar livros (que não escreveu). Agora, os carrocei…, perdão, os senhores no poder desistiram de mascarar o primitivismo. A brutalidade é servida sem filtros nem vergonha. E é por isso que o maior perigo da subjugação do regime à esquerda não é a ameaça à liberdade de expressão: é a ameaça à expressão propriamente dita. E falada. E, Deus os perdoe, escrita.

O problema, porém, não é a franqueza. A franqueza com que essa gente desatou a exibir os seus trágicos limites é apenas um sintoma, sintoma de despreocupação, de arrogância, de impunidade. Já não é necessário simular polimento, ou um vestígio de regras civilizacionais, porque a falta de civilidade deixou de ser escrutinada. Provavelmente, até passou a ser valorizada. Conhecíamos o estilo de ditaduras descaradas, ou de organizações totalitárias como o PCP e BE, onde o estilo é um programa. Percebe-se que dois anos de convívio bastaram para contagiar o PS, enfim livre para cumprir a sua natureza. A “azia” é a versão actualizada do “‘tou-me cagando”, do rudimentar dr. Ferro. Desobrigados, os que se sentem donos do país cruzam as pernas em cima da mesa, puxam do palito, aliviam o cinto e esfregam a barriga: estão à vontade. Mérito deles? Mérito do povo, ou da parte do povo cuja tolerância é imensa e inversamente proporcional à dos respectivos proprietários. A julgar pelas sondagens e pela apatia quase geral, o povo engole a propaganda, os mortos, os bancos, os sindicatos, as raríssimas, os insultos, o desprezo, o nepotismo e o que calha. Infelizmente, não precisa de Rennie.

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