Não é possível olhar para o atual Presidente da República sem admiração e algum espanto. Admira-se a inteligência, a capacidade de análise, a sagacidade política, a visceralidade com que entende os Portugueses. Muitos de nós apreciavam as suas sessões televisivas de comentário, pela facilidade no discurso, um humor subtil, o calor emocional, embora muito controlado, a aparente facilidade com que falava de tudo, a representação contínua, o entretenimento em que transformava as suas apresentações, a clareza e qualidade da linguagem. Podia-se não concordar com tudo, mas era bom de ouvir. Entretinha e isso chegava. Era como uma psicoterapia colectiva em que cada um ouvia o que queria ouvir e, dessa forma, estava-se menos só nas frustrações, alegrias ou preocupações. Ah, ele sabe, ele compreende, já viu tudo. Confesso que gosto do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa.

Marcelo Rebelo de Sousa chegou a Presidente da República por aquilo que fez ao longo de anos, por ter percebido que nunca seria primeiro-ministro, pelas sucessivas lições que soube colher nas derrotas que teve e pela construção de uma imagem que, no momento certo, saiu à rua para vender.

Todavia, independentemente das suas enormes qualidades, Marcelo não teria ganho se o adversário não tivesse sido Sampaio da Nóvoa. Foi Nóvoa que o elegeu à primeira volta. Marcelo ganhou porque o PS quis e PSD e CDS aceitaram não ter melhor candidato. Bastaria que o PS tivesse apoiado a Dra. Maria de Belém, em vez do inelegível Sampaio da Nóvoa, para que pudéssemos ter tido uma segunda volta que derrotaria Marcelo. Ou, pior ainda, Rui Rio, ou um outro qualquer PSD, ter decidido ir buscar uns votos ao mesmo pote. Quem sabe?

António Costa, ao apoiar oficialmente o Prof. Sampaio da Nóvoa, criou as condições para ganhar em qualquer cenário. Com a eleição de Marcelo, Costa ficou bem servido. Se houvesse segunda volta, contra um dos socialistas em presença, Marcelo poderia perder e Costa voltava a ganhar. Costa, como se sabe, nunca perde. Marcelo não ganhou apesar dos partidos ou contra eles. Tentaram convencer-nos desse mito. Marcelo venceu porque a máquina do PSD não se alheou dele, esteve lá sempre, porque a do CDS não se fez rogada em ajudar e a do PS nada fez para o derrotar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Professor Marcelo Rebelo de Sousa não está a ser um mau PR. Nada disso. Depois de ter tido a sorte de chegar ao cargo já com a geringonça montada, tem gerido os interesses de Portugal no estrangeiro, apoiado causas sociais, defendido a saúde — matéria que me é muito grata –, pugnado pelas forças de defesa e segurança, exigido justiça para os Portugueses, enfim, fazendo o que se espera do cargo, pelo menos na vertente pública que é a que interessa ao Prof. Marcelo. O resto, o que não se vê e nem se sabe se existe, é inconsequente para a apreciação do trabalho presente, não altera as contas de uma futura reeleição, nem move a curiosidade da maioria dos Portugueses.

Marcelo soube aproveitar, por si e para si, a grandiosa vitória que teve na sua eleição. Desde aí, foi sempre a subir. Marcelo diz, sempre que lhe convém, que quem se mete com o Presidente, perde. Tem sido verdade. Marcelo condiciona os seus críticos. Marcelo e a sua enorme aprovação popular, conquistada com o mérito de ter percebido não precisar de substância, condiciona a oposição e liberta o governo. A este, a António Costa e associados, basta deixarem Marcelo em paz, nas suas selfies, nos seus sorrisos, nas suas visitas, nos seus avisos a quem ninguém liga, nos seus discursos que seguem a expetativa do público a quem se dirigem, para que Marcelo não os incomode. Marcelo sabe que a sua reeleição depende da vontade da esquerda, em primeiro lugar, e da inépcia da “direita”, em segundo. A esquerda, sendo ainda cedo para António Costa, não ficará mal se Marcelo, uma espécie de geringonça em Belém, for o seu candidato, mesmo que seja apenas por falta de opositor à altura. Por outro lado, a “direita” admitirá que será difícil encontrar alguém que possa derrotar o PR em funções. O seu capital de simpatia, num País que não está interessado em política, chega para ser eleito sem nenhum tipo de dificuldades. Marcelo até pode ser o mal menor e nem ser o melhor dos bens que isso não lhe interessa, nem é relevante para quem nele for votar. Marcelo entretém e isso chega.

No entanto, Marcelo não perderia se lutasse mais para não ser um compère de Costa. Apesar da sua enorme taxa de aprovação, não lhe faria mal se fosse mais claro na separação natural que os portugueses esperariam de um PSD, o partido de que ainda não se desfiliou, em face do PS e quejandos. Marcelo deveria ter a hombridade de colaborar com governo sem ser muleta do Dr. Costa. Só que para Marcelo a cumplicidade é uma estratégia, tal como a intriga é uma tática.

O PR que temos, ao perder imparcialidade, mesmo que seja só na opinião dos mais atentos à coisa política, fragiliza a sua capacidade de promover diálogos e consensos. Passa a ser ouvido com a desconfiança de uns e o cansaço de outros e, dessa forma, perde eficácia. Esvazia a função presidencial de contrapoder, deixa de ser árbitro, e reduz a utilidade do cargo ao de um terapeuta de almas, sem dúvida importante, mas torna-se no amigo que oferece o ombro sem trazer soluções. Mas, em boa verdade, o capital popular do nosso PR é já suficientemente grande para poder sobreviver à queda, ainda remota no tempo, do líder do PS. Ambos saberão as regras não escritas do jogo que os aguenta, encostados um ao outro, nos cargos que exercem. Arrufos? Coisas de egos, sem matéria política. Consensos? Indispensáveis, mas só seriam possíveis se o árbitro não tivesse o hábito de inclinar o campo para a baliza que lhe dá mais jeito.

Marcelo, lá fora, defende o interesse nacional. Faz bem. Namora Angola porque entende que isso é bom para o País. Desfez-se do “irritante” mesmo que isso tenha sido a mais escabrosa defesa de um Estado cleptocrata. E não deixará de ir à investidura de Bolsonaro. Como não ir? Tal como abraça o Ping e, porque não, o Pong, se isso for importante. Vá lá, falou em direitos humanos, coisa que nem todos mencionam ao lado do Líder da RPC. E até convenceu-nos que o Trump lhe deu importância, logo o Trump que nem deve, ainda hoje, saber onde fica Portugal. Sejamos francos. O nosso Presidente fala línguas, é bem-educado, sabe usar talheres e tudo isso, mesmo quando lembra Sua Majestade Isabel II da sua provecta idade, deixa-nos ficar bem vistos.

O Professor Rebelo de Sousa tem gravitas quando quer, não é verdade que não tenha, mesmo quando abraça um peluche no aeroporto. Marcelo pode estar a sair do banho no rio e dar uma entrevista. Só mesmo o Dr. Mário Soares em pijama o bateu na escala da inconveniência imagética. Mas Marcelo em tronco nu, ou em camisola interior de alças, é um Senhor em tronco nu ou em camisola interior de alças. Ao contrário de um outro qualquer que de camisa aberta, calças de ganga e mocassins, mesmo que vista um casaco, continua a ser um qualquer de camisa aberta, calças de ganga e mocassins a desembarcar de um avião. Marcelo tem pedigree, o que incomoda parte da esquerda que dele precisa. Tem estirpe, mas usa a soberba com uma condescendência de avô que esmaga os críticos. Marcelo consegue ser popular sem ser populista. Marcelo não se mistura, metamorfoseia-se. Nem é snob, é nob.

Marcelo é um dos grandes profissionais da política em Portugal. Percebe o mundo de hoje, onde ser instagramer, youtuber ou bloguer é profissão. Onde os hits e contactos no facebook ou instagram tornam uma pessoa numa influenciadora digital. Onde uma apresentadora de TV, seja do que for, é mais importante do que um cientista ou um médico. Onde as declarações, por mais toscas que sejam, de um dirigente de agremiação desportiva – esse sim, “O Presidente” – abrem serviços noticiosos. Percebeu que há uma larga maioria de concidadãos que apenas querem um homem sorridente em Belém. Marcelo, ao ter entendido que a esmagadora maioria das pessoas não se interessa por ideias, é o último bastião que resta na confiança que a população terá nos seus políticos. Marcelo conhece, melhor do que ninguém, como encher o vazio com vazio e dar a ilusão de que está tudo cheio. Ninguém, desculpem-me o exagero, quer saber de coisas sérias. Nisso, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, o segundo sem um micra da elegância do primeiro, são idênticos. Portugal é o mesmo que Salazar construiu, o PS cristalizou e a esquerda acalenta. Marcelo sabe, doa a quem doer, que Portugal ainda é o Pátio das Cantigas.

Neste estado de coisas, Marcelo será um dos problemas da “direita”, ou só daqueles que não se reveem no seu estilo ou na sua política? Estilo é a pessoa e, para quem não gosta, é melhor não ouvir ou não ver. Para os felizes que têm TV por cabo há canais de filmes, com efeito antiemético. Quanto à política, o PR de hoje tem muito pouco de ideológico, para lá do obviamente consensual e o resto, de que ele tanto gosta, é Palácio. Para já, Marcelo obriga – faz bem – a que a “direita” resolva os seus problemas e encontre forma de voltar a ganhar eleições. Poderia ajudar mais? Podia, podia mesmo não desajudar, mas não quer e percebe-se porquê. Não precisa. Além do mais, Marcelo não tem especial simpatia por um partido de que já foi dirigente, sem grande sucesso, e não lhe presta vassalagem. No fundo, é a minha opinião, não vale a pena perder muito tempo a criticar o PR. O Professor Marcelo fará o que bem entender na sua lógica da política, a dos tempos em que vivemos, em que ter popularidade é a chave para o sucesso. Não é por causa do PR que a oposição irá ganhar ou perder as eleições. Deixem o nosso Presidente girar, tirar selfies, acompanhar o Costa, promover ministros, receber descontentes, abraçar contentes, e esqueçam a sua eventual recandidatura, inevitável e ganhadora. A esse jogo, Marcelo só não vai se não lhe apetecer. Enquanto isso o divertir, será Presidente enquanto puder. Do lado da oposição, concentrem-se no que há a fazer e dediquem-se mais a desmascarar o governo. Não percam o foco. Hoje, perder tempo a falar de Marcelo é mais problema para a direita do que o próprio Marcelo é o problema da direita.