Resposta ao recente artigo As “amarras” dos africanos à Rússia de Xavier de Figueiredo.

Muita gente se ocupa a escrever sobre a causa dos conflitos da humanidade. E as respostas que encontram são tantas que quase sempre exoneram o motivo principal. O dinheiro. Do presente. E do futuro. Do presente, na medida em que toda a ajuda financeira para equipar exércitos deve ter sempre um retorno. E ele tem de ser económico. E do futuro, na medida em que a guerra só termina quando no futuro estiver assegurado o retorno da ajuda financeira. Depois entra-se na famosa PAZ que nada mais é do que a gestão dos lucros da guerra. Por essa razão se explica por que nações que sempre se pautaram como pacifistas e defensoras dos direitos humanos não tenham mais pejo em se transformarem em belicistas e discriminadoras dos humanos quanto aos seus direitos. E quem normalmente exibe uma postura belicista surja repentinamente a defender o pacifismo. A guerra é um fenómeno desconcertante. Mas financeiramente proveitoso.

Quem estudou a I Guerra Mundial sabe muito bem a quem os estados da Tríplice Entente se endividaram antes e durante as hostilidades para susterem o ímpeto da Tripla Aliança. E de como em 1917 o investimento do credor foi posto em causa com a rendição da Rússia bolchevique ao poderio alemão e a subsequente ofensiva deste na Primavera de 1917, precipitando o envolvimento decisivo do credor no conflito e colocando o ponto final na contenda. E quem leu sobre a II Guerra Mundial sabe o que levou aspirantes a credor a terem de fazer a guerra para serem reconhecidos pelo credor como iguais. O preço que tiveram (e ainda têm) de pagar para serem tratados com maior deferência foi terrível para a sua economia. E sobretudo, para a sua geografia e herança histórica. Em suma, tiveram de se ajoelhar perante o credor. Mas parece que alguns se esqueceram disso muito depressa, ou andam distraídos.

Pois isso explica por que aspirantes a credor endossam a Nato e a União Europeia como condição para sua existência enquanto estados soberanos. Uma Nato e União Europeia que na realidade não passam da Casa Militar e da Casa Civil da ordem mundial que tem funcionado lindamente desde o Tratado de Versalhes de 1919, sobretudo quando liderada pelos EUA e pelo seu fiel conselheiro Reino Unido. Um Reino Unido que, embora já não exiba o esplendor de ter sido o maior império de todos os tempos em riqueza e extensão geográfica, possui o mérito de ser um David que manipula habilmente um Golias que se acha muito inteligente, explorando a simbiose política e cultural cultivada à nascença nos 13 Estados fundadores dos EUA. E assim, desde Benjamin Disraeli esta elite transatlântica tem conduzido os destinos da humanidade e lançado as fundações do establishment – ou sistema – que eterniza a separação entre o mundo do credor e os seus devedores.

Mas agora há um assunto que incomoda bastante o sistema: o ex-país dos sovietes e a infinidade dos seus descendentes. E pelas seguintes razões. São potencialmente ricos. São auto-suficientes em recursos energéticos. São cultural e cientificamente tão avançados como o credor. E, principalmente, sempre foram militarmente poderosos para determinarem o seu próprio destino. Juntos, podem determinar os destinos da Europa também, afastando-a ainda mais do credor. Separados, podem ajudar o credor a livrar-se da incómoda China socialista e de mercado, reproduzindo um modelo económico maquilhado nesta experiência totalitária, em terras historicamente governadas a pulso de ferro. É justamente a combinação desses factores que tem mostrado ao credor nos últimos 30 anos que não mais pode recorrer aos métodos tradicionais de endividamento para garantir o retorno do seu investimento.

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Logo, a opção tem de ser o enfraquecimento estrutural desses estados, dividindo-os em guerras fratricidas, empoladas pelos muitos equívocos da sua história comum. Nada que não se faça eficientemente na chamada sociedade da informação, onde tudo é instantâneo e consumido avidamente sem grande critério de ponderação. Uma sociedade da informação, que nada mais é do que um agit-prop do credor, como já se assiste na Ucrânia, onde uma lógica tão ilógica de liberdade de expressão resulta na consagração da unanimidade norte-coreana, como método principal de filtragem de informação para a defesa e protecção da sua opinião pública contra os malefícios da propaganda dos aspirantes a credor. Não importa se for um velho gago que só diz disparates, um loiro despenteado que não usa máscara COVID e dá festas de arromba, ou um eremita taciturno que tamborila sua testosterona numa longa mesa branca, não há nada que nos livre destas personagens orwellianas do nosso pequeno ecrã.

Não se sabe se a sociologia dos tempos conturbados em que vivemos irá culminar no reforço do sistema. Ou na sua auto-destruição. Mas a guerra na Ucrânia entrou agora na sua segunda fase, em que se espera o envolvimento directo do credor, pois não se imagina que a Rússia assista a um constante rearmamento da Ucrânia, sem retaliar militarmente por acção directa ou indirecta. Oiçamos o que já se diz na Polónia e nos países Bálticos quanto ao encerramento de fronteiras com a Rússia e a Bielorrússia na perspectiva da tomada do enclave de Kaliningrado pela força. Com a rolha McChartysta da lavra da Casa Civil do credor construiu-se a narrativa de um exército do Kremlin medieval, tecnologicamente atrasado e derrotado por uma pequena Ucrânia mal-armada e sem a cobertura aérea da Casa Militar do credor, para daí se partir para um conflito militar generalizado, regressando afinal ao cenário da I Guerra Mundial, onde tudo azedou com a revolução de Outubro e as imensas dividas que ficaram por pagar. E sem surpresas, tornaremos a ver amigos europeus de hoje a se tornarem novamente inimigos amanhã por causa de outros equívocos históricos trazidos à colação pela sociedade da informação.

Assim será, se o credor o desejar.