É sabido que as eleições europeias não suscitam o interesse dos eleitores. Os temas eminentemente europeus são pouco discutidos e quando o são, são-no de forma pouco pedagógica, intrincada e pressupondo um conhecimento das competências e regras procedimentais europeias que os eleitores compreensivelmente não têm. Proponho-me, por isso, explicar a importância do Parlamento Europeu para a vida dos refugiados.

A União Europeia, isto é, os seus órgãos (Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Comissão), determinam decisivamente alguns aspetos da vida dos seus cidadãos. Resumidamente, os Tratados elencam uma série de matérias como sendo matérias de dimensão europeia, determinam que nessas matérias os órgãos europeus têm competência para legislar e que essa legislação é vinculativa para os Estados-Membros, impondo-se à legislação interna (que não a deve contrariar), à administração pública (que a deve executar) e aos tribunais nacionais (que a devem aplicar, preterindo a legislação interna em proveito da comunitária, caso haja divergência).

O asilo é uma das matérias elencadas no Tratado da UE como matéria de dimensão europeia.

Existe, por isso, uma série de legislação europeia sobre o asilo, a cujo conjunto de normas se dá o nome de Sistema Europeu Comum de Asilo, que integra as seguintes normas:

  • “Regulamento de Dublin”, que estipula os critérios de determinação do Estado-Membro responsável por analisar o pedido de asilo e garantir os respetivos direitos;
  • Diretiva sobre as regras de procedimento do pedido de asilo, a qual garante o direito a informação, intérprete, contraditório e assistência jurídica;
  • Diretiva sobre as condições de acolhimento, que impõe o acolhimento em condições “adequadas”, acesso a habitação, alimentação, apoio médico e psicológico e direito a trabalhar;
  • Diretiva que define os critérios para a concessão de asilo;
  • Regulamento Eurodac, que ajuda os Estados-Membros a determinarem e controlarem o percurso do refugiado, mediante a comparação de impressões digitais.

Assim sendo, como se compreende a anarquia que nos chega pelos meios de comunicação? A recusa em receber barcos quase naufragados e em acolher refugiados através de quotas equitativas. Os maus-tratos a refugiados nas fronteiras. A repulsa de refugiados sem lhes dar a oportunidade de serem ouvidos. As condições desumanas, indignas e criminosas vividas nos campos de refugiados gregos.

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Ao contrário do que pode indiciar, estas falhas não são o resultado da inexistência de regras, mas sim da existência, por um lado, de regras desequilibradas e, por outro lado, da falta de investimento europeu e vontade nacional para torná-las exequíveis.

Refiro-me essencialmente à regra de determinação do Estado-Membro responsável pelo refugiado -Regulamento de Dublin – que determina que o refugiado não pode circular pela UE, que tem de ficar no Estado pelo qual entrou na UE e que esse Estado tem a responsabilidade de tratar do seu processo.

Ora, tendo em conta as rotas migratórias para a UE, esta regra acaba por sobrecarregar a responsabilidade do acolhimento nos Estados que fazem as fronteiras terrestres e marítimas da EU, criando um desequilíbrio na responsabilidade pelo acolhimento.

Este desequilíbrio tem sido criticado por boa parte dos Estados-Membros, especialmente – claro está -, pelos Estados-fronteira. Durante o mandato que ora cessa, o Parlamento Europeu discutiu a alteração do Regulamento de Dublin, para que o ónus de acolhimento fosse menos desequilibrado e mais partilhado, não tendo havido acordo sobre os critérios aplicáveis (se meramente quantitativos, se dependentes das escolhas dos refugiados, se conjugando estes dois), o que, infelizmente, bloqueou a alteração.

Outra hipótese de correção da situação existente – embora não seja a solução defendida pelos Estados-fronteira, nem pelas ONG´s que defendem os refugiados, seria o investimento europeu na capacidade de acolhimento dos Estados-fronteira proporcional à responsabilidade que o Regulamento de Dublin lhes imputa.

Mas, lamentavelmente, o investimento europeu tem ido noutro sentido. Ainda no mês passado, em final de mandato, o Parlamento Europeu aprovou o reforço das competências e dos recursos humanos (criação de um corpo próprio de 10 mil funcionários) da Agência Europeia da Fronteira e Guarda Costeira, focado na segurança das fronteiras, ao passo que o Gabinete Europeu de Apoio em Matéria de Asilo, focado na proteção dos refugiados, continua sem ter o reforço de poderes e recursos que há muito se vem pedindo.

Temos, pois, o pior de dois mundos:  uma regra desequilibrada e uma política que agrava o seu desequilíbrio.

Finalmente, fruto do contexto político vivido nos Estados-fronteira, estes, nuns casos não dão o seu melhor, noutros casos nem sequer tentam.

Portanto, existem regras, mas que não são funcionais. E é essa disfuncionalidade que cria a desordem. E é a desordem, por sua vez, que cria no cidadão europeu médio a sensação de incapacidade europeia de acolhimento.

De facto, milhares de pessoas ordeiramente fiscalizadas no aeroporto não assustam, ao passo que algumas centenas de pessoas esfarrapadas, desesperadas, aos gritos, empurradas pela polícia, captadas com um determinado ângulo de câmara, são uma multidão incomportável.

Mas, na verdade, o número de migrantes que chegaram à Europa, desde 2015, representa menos de 0,3% da população europeia; em 2017, apenas um país europeu – Alemanha – figurava entre os 10 países com mais refugiados; as passagens ilegais detetadas nas fronteiras da UE diminuíram 95% em comparação com o pico em outubro de 2015 e estão de volta aos números anteriores a 2015.

Contudo, em 2018, pelo menos 2275 pessoas morreram a tentar atravessar o Mar Mediterrâneo e até final de abril de 2019, já tinham morrido 409.

Além disso, mais de 15 mil pessoas continuam presas nas ilhas gregas, em campos sobrelotados, em condições criminosas, pelas quais um dia o futuro nos condenará, estupefacto.

Em suma, a regra basilar do Sistema Europeu Comum de Asilo não funciona e tem de ser urgentemente alterada. Atrasar essa decisão é continuar a assistir à desumanidade dentro da UE e às suas portas.

Claro que não é só no Parlamento que se aprova a legislação comunitária e se decide como aplicá-la. O processo legislativo europeu depende, por regra, da participação do Parlamento, do Conselho (órgão constituído pelos Chefes de Estado de todos os países) e da Comissão. Na verdade, o Conselho Europeu tem sido o grande obstáculo à aprovação de alterações legislativas que melhorem o sistema, designadamente o Regulamento de Dublin. Em relação ao Conselho Europeu, as suas políticas dependem dos votos nas legislativas em cada Estado-Membro. Em relação ao Parlamento, as suas políticas dependem do voto no próximo dia 26 de maio.

Diretor-geral do JRS Portugal (Serviço Jesuíta aos Refugiados)