Os tempos mudaram e a classe política portuguesa parece não ter notado. O final da segunda guerra mundial deu forma a um novo espaço público, de acordo com regras geradas a partir do novo consenso político que resultou da derrota dos regimes iliberais. Essas novas regras, quase sempre implicitamente convencionadas, delimitaram a intervenção política, não só em relação ao que pode ser dito como também ao modo como pode ser dito. Como quaisquer outras regras, também estas cumprem a função de distinguir espaços: nós fazemos assim e dizemos assado, ao contrário do que é feito e dito noutros espaços. E com essas novas regras criou-se um espaço público distinto dos valores e ideias iliberais que marcaram a Europa no período entre guerras, inaugurando um modo específico de ver a política e discutir os assuntos políticos.

Essa delimitação assenta numa lógica de inclusão/exclusão, determinando o que é admissível e não é admissível, num esforço de identidade que a lógica amigo/inimigo de Carl Schmitt expressa. Em termos práticos, esse consenso liberal significou a exclusão de assuntos sensíveis, termos menos gentis e estilos mais agressivos. Hoje muitas vozes se queixam do politicamente correto, mas este movimento concreto constitui apenas uma pequena parte do entendimento da expressão pública. A etiqueta generalizou-se, mas não devemos confundir os dois planos. O consenso liberal é mais amplo e cobre um espaço maior do que um certo ativismo académico que visa expurgar palavras e expressões da linguagem comum.

Em algum momento, no entanto, o consenso liberal fragmentou-se. Terá sido o 11 de setembro e as reações securitárias? A incapacidade de as democracias liberais reagirem adequadamente à crise de 2007/8? A tecnologia digital e a abertura do espaço público promovida pelas redes sociais? Ou terá sido simplesmente o desgaste normal que acompanha todos os momentos históricos (que são históricos no preciso sentido em que terminam e se tornam história)? O certo é que vemos sinais dessa fragmentação por todo o lado e as regras e os limites do consenso liberal estão hoje desmaterializados, tendo-se aberto o espaço para figuras que recusam o seu cumprimento.

Mas cometeremos um enorme erro se responsabilizarmos essas figuras pela fragmentação. Estaríamos a olhar para as consequências em vez de considerar as causas. Não foram elas a forçar a mudança para se fazerem ouvir – antes aproveitaram a mudança para se fazer ouvir. E revelaram o preço a pagar pela democracia liberal: as pessoas comuns são livres de expressar a sua concordância com o que outros pensam e dizem mesmo que, no domínio político por excelência, essas vozes continuem a parecer inaceitáveis. É este o apoio que está por trás de Donald Trump ou Jair Bolsonaro, com todas as particularidades nacionais que desconsideraremos aqui. É também isso que acontece com André Ventura. Tivesse nascido vinte anos mais cedo, Ventura estaria condenado à obscuridade política, mas o seu estilo polemista, corrosivo e despreocupado com regras linguísticas e de etiqueta adequa-se aos novos tempos.

A mais recente reação à proposta do Livre revela isso mesmo. A questão não está na literalidade do que disse (o deputado já esclareceu o sentido da publicação). A questão é que a estratégia argumentativa de André Ventura escapa às regras de conteúdo e estilo do consenso liberal. Ao virar a proposta do Livre do avesso, procurando revelar a absurdidade e a incoerência da medida, Ventura apresentou um argumento político que tem fundamento e densidade suficientes para ter justificado já uma ampla discussão académica. Mas o problema é o estilo: André Ventura podia ter dito o mesmo de outra forma, mas as regras do jogo liberal desapareceram e o espaço público é propício ao deputado do Chega. A maioria dos atores do establishment político parece não o ter percebido – ou, tendo-o percebido, está desprovida de ferramentas para lidar com esta ameaça. Por isso, fala em racismo, xenofobia, discurso de ódio. Mas basta abrir as caixas de comentários dos media digitais para perceber que estão fora do jogo e fora de jogo. O discurso identitário do Livre gerou uma contrarresposta e essa contrarresposta dispensa hoje as regras do velho consenso liberal. Os tempos mudaram e a classe política portuguesa ainda não o compreendeu.

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