Frequentemente o povo português é descrito como sendo detentor de uma identidade regulada pela disciplina, de obediência às ordens como forma quase exclusiva de nos orientarmos em prol dos objetivos comuns, mesmo quando estas ordens implicam ser um Povo Pequenino com “tanto amor ao bastão”, como caricaturaram Fado Bicha. A saudade pessoana, profunda e crónica daquilo que já adorámos e mesmo das coisas nunca existentes forma a nossa bidimensionalidade: ora aceitamos uma vida serena, sem grandes agitações ou desafios às autoridades, ora reclamamos do estado das coisas pelo uso veemente da palavra e pela desconfiança em relação a quem nos lidera, sempre com o sentimento de que o passado já foi bem melhor do que o presente se nos afigura ser.

Esta última ideia de lamentação sobre o trabalho desempenhado por aqueles que nos governam é o que suscita a nossa reflexão trazida a este texto. A identidade torna-se política a partir do momento que incorpora ideologia, pois é-lhe dada uma ênfase e um ónus enquanto símbolo de uma cosmovisão própria. Afinal, sermos o que somos é também sermos os nossos pensamentos, as nossas interpretações do mundo, as nossas ações nos variados contextos, elementos que, pela nossa humanidade, só podem ter um caráter social associado a algum tipo de reação à realidade existente. Por isso, cada projeto biográfico está intimamente ligado a um quadro político onde as práticas são desempenhadas, justificando o modo como um dado povo olha para si mesmo e para os seus dirigentes.

Os últimos casos de dezenas de demissões no atual executivo de António Costa, Secretário-Geral de um partido que as pessoas conhecem muito bem por ter sido aquele que mais anos esteve no poder – Partido Socialista (PS) – em tão escasso tempo, são um exemplo de como podem os portugueses transitar de sentimentos pacíficos para uma suspeita evidentemente patológica que, mais tarde ou mais cedo, sempre nos irrompe na vida política e na ligação da mesma às dificuldades vividas pela sociedade. A perceção de que quem alcança funções públicas de relevo as utiliza para efetuar e institucionalizar a prática da corrupção e de outros crimes de colarinho-branco vai ao encontro da visão da corrente do elitismo italiano, defensor de que somente os melhores de um país atingem o poder e a capacidade representativa de todos os outros; mais, é um autêntico propulsor da desvalorização da democracia, contribuindo para um estado de descrença relativamente à idoneidade dos que deveriam zelar pelo bem-estar coletivo.

As consequências dos atuais eventos referentes às múltiplas demissões de membros do governo, aos atrasos no desenvolvimento de projetos públicos e ao incremento do custo de vida e das desigualdades têm vindo a produzir uma suspeição por parte do povo português no que concerne aos seus representantes e levado a acentuar um contínuo ceticismo para com a democracia no país, gerando um sentimento de revolta generalizado. Entre os exemplos potenciadores desta crise política, cultural e anímica encontram-se o afamado projeto da construção do novo aeroporto de Lisboa, que, durante décadas, consumiu fundos ao Estado somente para a elaboração de múltiplos estudos, sem conclusões reais; a problemática venda das barragens por parte da Energias de Portugal (EDP); as perdas financeiras que tiveram a Transportes Aéreos Portugueses (TAP) e o Novo Banco; os processos judiciais demorados e escandalosos envolvendo figuras políticas. Todos estes acontecimentos evidenciam a incompetência dos governantes, mas também as razões pelas quais vários portugueses acreditam serem mais apelativos os ideais da direita radical, que só pode esfregar as mãos de euforia por considerar ser expressiva da personalidade exclusiva das pessoas “de bem”. Logo, a perda de força do nosso sistema democrático e o crescente apoio e adesão a movimentos e partidos da extrema-direita são, pois, um exemplo prático da saturação do povo português que se tem incorporado perigosamente na sua forma de estar perante os problemas sociais que nos constrangem, chegando mesmo à representação política.

Os discursos destes grupos de ideologia violenta, ao transmitirem exatamente aquilo que a população quer ouvir em momentos de maior fragilidade – promessas de soluções milagrosas – pretendem a instauração de uma pseudo-equidade social que leva os cidadãos já cansados da situação atual do país a entrarem numa espiral em que a identidade coletiva sai transfigurada em pretensões de uma atuação agressiva para encontrar urgentemente alguma pacificação. Contudo, após fenómenos tão disruptivos como uma pandemia, uma guerra e os efeitos de uma inflação que alarga cada vez mais o fosso entre classes sociais, precisamos de uma união agregadora que emancipe a nossa cidadania em prol de uma visão mais proativa sobre as causas potenciadoras de mudança. Entre o conformismo plácido e a sublevação irrefletida o sucesso dos portugueses necessitará de uma disciplina criativa e de uma diligência organizada, com o intuito de atingirmos a centralidade amada por António Lobo Antunes e outros artistas que, pela sua coragem, tanto expandiram as fronteiras autocondicionantes da portugalidade.

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