A noite de 9 de Novembro de 1989 foi uma das mais belas da História Europeia. Depois de décadas a viver sob o jugo da abjecção Comunista, meses de protesto, erosão social e a inexorável decadência económica conduziram ao início da Queda do Muro de Berlim. Nessa noite, numa conferência de imprensa que ficaria para a história, Günter Schabowski, dirigente do partido que dominava com mão de ferro a República Democrática Alemã, dirigindo, por exemplo, a Stasi, cometeu um erro: perguntado sobre quando entrariam em vigor as novas regras sobre a liberdade de circulação, respondeu com hesitação: “tanto quanto sei, imediatamente, sem quaisquer demoras”. Nessa mesma noite, milhares de Alemães começaram a demolir o muro da vergonha.

Porém, nem toda a gente ficou contente. Um oficial vagamente obscuro do KGB, estacionado em Dresden, na Alemanha de Leste, desde 1985, de seu nome Vladimir Putin, via o desenrolar dos acontecimentos com apreensão. Mais tarde, já presidente da Rússia, apodaria aquela noite e os acontecimentos que se lhe sucederam como a maior catástrofe geopolítica do século XX.

Em Portugal, o PCP, nessa altura ainda dirigido por Cunhal, recebeu as ondas de choque da queda do Muro e do fim da União Soviética com dificuldade. Depois da Hungria em 1956 e da (gorada) Primavera de Praga em 1968, nas quais, de resto, o PCP se posicionou ao lado do PCUS contra os revoltosos que pretendiam lutar pela liberdade, todo o projecto político da vida de Cunhal chegara ao fim. O político iliberal, do qual Portugal apenas se livrara graças à coragem política (e física!) de Mário Soares, fora derrotado. Em 1995, Cunhal demonstrava desprezo por Gorbatchov e afirmava que, tendo este contribuído para a queda da União Soviética, tinha feito muito mal ao mundo.

O fim do Socialismo real foi saudado em todo o mundo como a vitória das democracias liberais, baseadas nos direitos humanos, liberdade de expressão e competição política livre. Os anos 90 foram anos de euforia, que viriam a mostrar, porém, ser apenas um intervalo na história na luta contínua entre os liberais democráticas e os apoiantes das autocracias e totalitarismos.

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Apesar da vitória do liberalismo ter sido celebrada no Ocidente, houve um conjunto de cidadãos que haviam nascido na Alemanha de Leste que, uma vez integrados na República Federal Alemã, sentiam-se cidadãos de segunda, percepcionados derrogativamente como Osties vagamente racistas, pouco tolerantes e excessivamente influenciados pela cultura Russa. Não por acaso, ao mesmo tempo, começou a surgir a noção de Ostalgie, isto é, um neologismo Alemão para aqueles que sentiam nostalgia do Leste (Ost+talgie), como reacção do desenrolar dos acontecimentos. Este sentimento, importa sublinhar, não era necessariamente ideológico, manifestando saudades do Comunismo. Representava, isso sim, saudades em que a posição relativa no mundo destes cidadãos fazia sentido. Saudades, no fundo, de um tempo em que, apesar de mais pobres, não se sentiam cidadãos de segunda num país rico e pujante, mas, sim, cidadãos (iguais) num país pobre e em declínio que tinha uma narrativa – e um inimigo — comum sobre a sua própria história. Na Alemanha de Leste, os cidadãos estavam integrados socialmente em instituições geridas pelo Estado, como por exemplo os Jovens Pioneiros, no qual todas as crianças participavam e cujo objectivo primordial consistia em socializá-las para as valores dos Estado.

Chegados aqui, no meio do momento tristíssimo que vivemos, a posição do PCP é bastante intuitiva de perceber. Vladimir Putin e PCP partilham uma profunda Ostalgie. Apesar de radicalmente opostos do ponto de vista ideológico, Putin é um totalitário fascista e o PCP continua a ser firmemente marxista-leninista versão Estalinista (pré-XX Congresso!), ambos têm saudades de um tempo que já não volta. Putin tem saudades da declinação da Rússia imperial que conhecia, na qual havia um controlo de um conjunto de estados-satélite que davam grandeza e significado geopolítico ao seu país. O PCP tem saudades de um tempo em que o Comunismo e o partido faziam sentido no mundo, com maior capacidade de intervenção sindical e influência nacional e internacional, desde logo arregimentando intelectuais de todo o mundo que viam no Comunismo uma grande narrativa histórica através da qual poderiam organizar o mundo.

Putin e o PCP partilham um ódio de morte à liberdade, à democracia representativa, aos Estados Unidos, à União Europeia, à NATO. No fundo, tudo isto, desde a liberdade à NATO, representam diferentes declinações da mesma coisa: o Ocidente rico, capitalista, civilizado e no qual a liberdade está acima de tudo. Depois de 20 anos de humilhações constantes, a Rússia está de volta. É certo que, ao longo destes 20 anos, houve pequenos ensaios para o regresso em força ao palco internacional, como por exemplo, a Ossétia do Sul, em 2008 ou a Crimeia em 2014. Todavia, Putin precisou de 20 anos para consolidar o seu poder interno de forma total, assim como preparar a sua economia para este embate. Para percebermos o modo como essa preparação foi feita basta olhar um facto: apesar de ser um país com uma economia pobre e de estrutura terceiro-mundista – baseada fortemente em extracção de recursos e de rendas de elites cleptocráticas – a Rússia conseguiu ter uma das maiores reservas mundiais de moeda estrangeira estacionadas em dólares e euros, que, prontamente, foram congeladas.

A ligação de Putin ao PCP não é ideológica, nem acredito que haja qualquer tipo de ligação Moscovo-Soeiro Pereira Gomes. A explicação é mais simples. Putin vê isto como a vingança da Rússia e o regresso da Grande Rússia aos grandes palcos mundiais, dominando a agenda internacional e incutindo medo no Ocidente. O PCP continua a ser fortemente iliberal, contra a NATO e, irremediavelmente, contra os Estados Unidos. Esperemos que ambos sejam derrotados rapidamente e remetidos para o caixote do lixo da História onde já deveriam estar há muito. Infelizmente, as imagens que nos chegam todos os dias da Ucrânia são muito tristes e fazem lembrar épocas transactas que julgávamos já ter ultrapassado completamente na Europa.