Esta semana, assinala-se o primeiro ano de governo PS com o apoio parlamentar de PCP e BE. E esse ano conta-nos duas histórias. A primeira é a de uma esquerda que, encurralada por uma derrota eleitoral, se viu obrigada a ultrapassar divergências históricas para sobreviver. O PS safou-se da irrelevância a que o voto popular parecia tê-lo remetido e resistiu à sua extinção – como o secretário de Estado Pedro Nuno Santos reconheceu, a actual solução de governo salvou o PS. O PCP resgatou os seus sindicatos e clientelas em áreas-chave, nomeadamente nos transportes e na administração pública. E o BE iniciou a sua disseminação pelas teias do poder, posicionando os seus na máquina do Estado e nos órgãos de soberania.

O mais notável desta história é que a esquerda não só alcançou o poder, como parece ter criado condições para nunca mais o deixar fugir. Trocou as difíceis reformas estruturais pela manutenção do status quo, financiado pelo crédito barato do BCE e pelo aumento da dívida pública. Instaurou uma política de satisfação de clientelas – funcionários públicos, pensionistas (pobres e ricos), as elites do regime (sobretudo do sistema bancário) – que valem os votos necessários para ganhar eleições. E disseminou uma percepção de paz social que, para fora, transmite a ilusão de que tudo corre às mil maravilhas – o monopólio do “protesto de rua” de PCP e BE está finalmente ao serviço do poder. Dir-me-ão: com essa estratégia e sem reformas estruturais, não se antevê que o país possa ser competitivo no espaço europeu – porque, um dia, o BCE vai fechar a torneira. De facto, assim é. Mas, até lá, o guião do PS (e da esquerda) para se perpetuar no poder tem tudo para funcionar.

Esta é a primeira. A segunda história deste ano está do outro lado da trincheira partidária. À direita, PSD e CDS não digeriram o afastamento do governo após a vitória eleitoral. E, um ano depois, a indigestão já vai longa. Nenhum dos partidos conseguiu definir e apresentar um projecto político que seja algo mais do que a reencarnação da governação 2011-2015 e que dê resposta à estratégia clientelar da geringonça. O problema não está especificamente na oposição parlamentar – que é muito difícil quando exercida por dois partidos contra o governo e os quatro partidos que o apoiam (PS/BE/PCP/PEV). Nem está nos protagonistas, como tanta gente insiste em simplificar. À excepção de figuras como Marcelo, cuja popularidade vale por si, novas lideranças partidárias não garantem vitórias eleitorais – lembram-se de António Costa? A questão situa-se, sim, na ausência de uma estratégia política de longo prazo, que imponha um rumo e um discurso para cativar os milhares de eleitores que viraram as costas à coligação “Portugal à Frente”. É que, de tanto pensar a curto prazo e esperar que o navio do governo naufragasse, a direita ficou à deriva.

Não é por acaso. Há muito tempo que a direita não tem um projecto político próprio. Que aceita a premissa de que o país é naturalmente de esquerda e que à direita se reserva o lugar circunstancial de bombeiro para apagar fogos socialistas. Foi isso que aconteceu entre 2002-2005, após o pântano guterrista. E foi isso que aconteceu entre 2011-2015, quando governou com a troika após o PS de Sócrates ter estilhaçado as contas públicas. E é nessa mesma premissa que, em 2016, vai gerindo o seu dia-a-dia: anuncia o desastre ao virar da esquina, porque só através da necessidade de limpar os estragos consegue justificar a sua relevância. Mas, afinal, quais são as suas bandeiras? Que visão tem para o país? E onde deseja ver Portugal daqui a 10 ou 20 anos? Não se sabe: não há bandeiras, visão ou projecto. E essa redução do seu papel político tem consequências: enquanto não houver a percepção de estrago, PSD e CDS não têm papel para desempenhar – ficam meros espectadores da cena política.

Talvez isso bastasse há uns anos, quando a alternância política era um dado adquirido. Mas as regras do jogo político mudaram de há um ano para cá. E, à direita, ainda não se assimilou essa mudança, que coloca PSD e CDS numa bifurcação estratégica. Ou seguem os mesmos caminhos de sempre e perdem – porque uma esquerda unida torna-se imbatível no jogo clientelar dos aumentos dos funcionários públicos, do agradar aos pensionistas, da manipulação do sobe-desce dos impostos, das benesses corporativas, da estatização da economia. Ou assumem um projecto conjunto para o país – com bandeiras políticas, objectivos definidos e uma visão reformista para a sociedade e a economia portuguesas. E, através dele, apelam cativam novo eleitorado. A escolha devia ser fácil de fazer.

Devia, mas pelos vistos não é. A paisagem política alterou-se muito neste último ano. Mais do que os partidos à direita, entretidos nas suas pequenas guerras internas, parecem dispostos a reconhecer. Só que os meses passam depressa. E quanto mais tempo PSD e CDS demorarem a lançar um projecto político comum, mais fundas serão as raízes da geringonça.

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