1Há dias na apresentação do meu último livro na Fundação Gulbenkian ouvi-me a mim própria dizer que a curiosidade fora muito cedo acolhida como um imperativo. Com o qual ando de roda das coisas para que a curiosidade valha a pena e se transfigure numa mediação com utilidade. Mas…apesar da curiosidade e para além dela, como escolher o que se conta? Eis tarefa sempre fornecedora da dúvida e foi a minha hoje: contar ou não contar?

O tema não é simpático, ninguém gosta de ouvir falar de doenças, a quadra natalícia pede pausas de enlevos mas a história vale pelo epílogo. E pelo guião, escrito em co-autoria por um português curioso e fazedor. Um“ desinstalado”, melhor dizendo mas há-de haver gente neste Natal que lhe agradecerá o ele ter-se desinstalado.

2 Era uma vez alguém com o costume de começar o dia abrindo o iPad para ler as novas do mundo. Corria o ano de 2016 quando num desses dias “tropeçou” numa notícia que subitamente lhe dizia directamente respeito: um grupo de cientistas portugueses do IPATIMUP do Porto, tinham sido premiados pela internacional Fundação Everis pela descoberta de um teste genético para a deteção do cancro da bexiga de uma forma completamente não invasiva. A espantosa novidade corporizava-se numa também espantosa coincidência.

“Dei um pulo na cadeira” lembra-se o co-autor deste “guião”, o madeirense David Caldeira, engenheiro químico, 74 anos, quando há tempos contou esta história num almoço no Funchal, onde – outra coincidência – eu me encontrava. O próprio David fora dez anos antes diagnosticado com a mesma doença, fizera três cirurgias, vivera uma saga com duas faces: numa estava um tumor normalmente não invasivo; na outra, o risco de ele ressurgir, obrigando a alta vigilância e exames periódicos e desconfortáveis. Entre a leitura da noticia e a vontade de saber mais, David Caldeira procurou o professor Sobrinho Simões, director do IPATIMUP, a seguir, os jovens cientistas. Um quarteto de doutorados – Paula Soares, Hugo Prazeres, João Vinagre e Rui Batista – que fora capaz de um “invento” promissor. O início de “múltiplas e demoradas conversações”, comprovava que também se iniciava outra etapa.

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“Queria ser o primeiro utilizador do novo teste que eles tinham criado e depois fazer o que estivesse ao meu alcance para que após aprovação, ele chegasse ao maior número de interessados” .

Esperou – é sempre longo o caminho exigido aos dispositivos médicos antes de poderem chegar ao mercado (aprovações, licenças, etc.) – e depois fez mesmo o que “estava ao seu alcance”: criou uma “uma parceria empresarial com a finalidade de colocar o teste, à disposição dos doentes com este tipo de cancro em todo o mundo, num prazo razoável”. Após a validação internacional realizada na Holanda no Hospital Universitário de Nijmegen – reputado centro de referência desta patologia – o teste, baptizado de Uromonitor foi registado em mais de cem países”.

3 Apesar da sua tenra idade a descoberta cientifica deu já origem a teses de doutoramento, em Portugal e no estrangeiro; proporcionou a criação de uma Startup financiada pelo mesmíssimo David Caldeira (sem que nunca houvesse necessidade de recorrer a subsídios ou empréstimos bancários) e o Uromonitor foi apresentado no último Congresso da Associação Portuguesa de Urologia, em Novembro passado, pelo professor Nair Rajesh, urologista de um hospital londrino onde o teste está a ser usado. Para grandes males, grandes ambições de lhes pôr termo.

4 É claro que nada disto teria possível sem o esforço dos investigadores e o trabalho dos cientistas, sobretudo sem a formidável qualidade do IPATIMUP. Estamos a falar de inovação e ciência e não de paraquedistas bem intencionados. Talvez David Caldeira venha até a ganhar dinheiro, tem reputação de arguto e talentoso mas não foi isso que me interessou. Naquele almoço debruçado sobre o mar o que se apreciou foi a invulgar colaboração entre a capacidade de iniciativa de um cidadão comum e a ciência portuguesa. Transformando uma descoberta científica num produto disponível que prestigia a nossa ciência e serve os pacientes, aqui e mundo fora. A “desinstalação” não é porém um tique, uma sorte ou um atributo, é uma decisão de vida. Logo, com o poder de a mudar e longe andam de nós, seja em que domínio for, compensadores exemplos de boas “desinstalações”.

5 Que tem isto a ver com o Natal? Nada dirão os distraídos ou os apressados. Pode ter, sugiro eu. Participar na promoção do bem comum tornando acessível um artefacto clínico que menoriza o sofrimento, não é obviamente um exclusivo de efemérides religiosas ou de datas celebratórias. Mas pode torná-las menos ansiosas e mais doces, reduzindo a grande margem que separa a saúde do sofrimento e haverá melhor motivo de festejo natalício?

6 Há dias o jesuíta Vasco Pinto de Magalhães que não é um radical ,nem um ortodoxo, nem um duro de coração, antes um homem deste tempo – inteligência fértil, aberta, lúcida, atentíssima – separou águas. Descendente, herdeiro, continuador e propagador da civilização judaica-cristã, usou e ousou de uma perplexidade vibrante, para perguntar “onde estava o festejado?” neste Natal que ele queria “outro”:

“Entre bolinhas, fitas e estrelas foram a pouco e pouco desaparecendo todos os sinais pessoais do Natal. Não nasce nem nasceu ninguém. Acabou o presépio e até do pai Natal que ainda era alguém, ficaram as renas. Esvaziaram tudo o que era pessoal. Razões ideológicas ou económicas? Certamente as duas, ajudam-se. Ficam as Boas Festas’ A quem? Porquê? Onde está o festejado?”

Outro Natal. Porque como também disse José Tolentino de Mendonça “os dias 24 e 25 passam depressa mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais do que lentas. São irremovíveis”.

Boas Festas, caro leitor,