A preparação da estratégia portuguesa no quadro da PAC (PEPAC) irá decorrer até ao final deste ano. A primeira parte deste artigo foi publicada no OBS no passado dia 31 de julho, a segunda parte no passado dia 13 de agosto, este é o último artigo desta série. Recordo o que disse no artigo anterior de 13 de agosto, “se considerarmos que esta década será a década da grande transição climático-ecológica, então, o Estado-administração, por razões que se prendem com o combate às alterações climáticas e a prevenção dos grandes riscos, irá alargar o âmbito e a natureza das suas intervenções e a latitude do domínio público, do seguinte modo:

  • Pela criação de uma série de ecoregimes e medidas de condicionalidade verde muito diversas que visam prevenir, mitigar, remediar, adaptar, conservar e restaurar;
  • Pela criação de várias figuras normativas de planeamento e gestão;
  • Pela criação de várias figuras de curadoria territorial como os condomínios de aldeias, as comunidades locais de energia, as zonas de intervenção florestal, as áreas integradas de gestão paisagística, entre outras”.

Este último tópico – as figuras de curadoria territorial – já anuncia o meu pensamento nesta matéria. Nos últimos artigos referi-me aos modelos AAA (agricultura, ambiente, alimentação) e ICT (inteligência coletiva territorial) como representações apropriadas de olhar para o policy-problem do universo agro rural. As figuras de curadoria territorial pertencem ao modelo ICT e um bom exemplo dessa representação diz respeito ao que eu aqui designo como “os geossistemas de base agroecológica e a coprodução de bens de mérito”. Este crescimento do domínio público, comunitário e social, motivado por razões climáticas, ecológicas, energéticas, de ordenamento paisagístico, mas, também, de revitalização sociodemográfica, irá matizar a ocupação do espaço e diversificar o leque de instrumentos ao dispor da política de coesão territorial. Por isso, eu pergunto: que matriz de agriculturas queremos ter em 2030 que respeitem o novo alinhamento entre microclimas, ecoregimes, energias renováveis, ecossistemas e serviços de ecossistema, infraestruturas digitais e ecossistemas inteligentes, novos sistemas de produção agroecológica, uma nova ocupação sociodemográfica?

Ou, de outra forma, ainda, não podemos voltar à agricultura tradicional de base orgânica, mas, também, não podemos cair numa agricultura comercial cada vez mais artificializada; maior pluralidade nos modos de fazer agricultura numa base agroecológica parece ser a solução mais equilibrada.

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Nesta linha de pensamento, estou em crer que a PAC 2030 será já uma política de transição paradigmática, apesar da luta intestina e clandestina para manter, tanto quanto possível, os privilégios corporativos alcançados ao longo de várias décadas. Não vou aqui defender os interesses da economia agrária convencional, habilmente construída, não tenho competência nem delegação para tal. Todavia, na minha modesta opinião, a única forma de a PAC 2030 não se transformar numa política de banco de urgência, cuidados intensivos e ajuda humanitária, em consequência da proliferação de desastres naturais, cada vez mais intensos e frequentes, é deixar de ser complacente com os sistemas de produção baseados no agronegócio extrativista, na globalização das pegadas ecológicas, na exploração indigna de mão-de-obra migrante, na prática de preços de transferência para a evasão fiscal e na socialização via contribuinte das externalidades negativas produzidas que, em conjunto, violam as regras mais elementares de responsabilidade ambiental, social, económica e fiscal e, em vez disso, assumir claramente a mudança paradigmática e dar sinais claros sobre a orientação política e a política de ajudas que quer privilegiar daqui até 2030.

Com efeito, quantos mais episódios de seca extrema, ondas de calor, incêndios violentos, graves carências de água doce, chuvas torrenciais, solos degradados, colheitas perdidas, pragas e doenças agressivas, perdas críticas de biodiversidade e serviços de ecossistema, abandono e desertificação humana, iremos nós testemunhar ao longo de toda esta década?

E a PAC, vai assistir impávida e serena ao desfile destes acidentes graves e sérios, continuando a distribuir as suas ajudas diretas, históricas e assimétricas, do 1º pilar, cada vez mais ecocondicionadas, é certo, mas seguramente condicionadas pela súbita necessidade de cuidados intensivos e banco de urgência?

Ou, dito de outro modo, ainda. Apesar dos factos graves e sérios de natureza climático-ecológica, mas, também, económicos e sociais, vamos ter uma PAC “meio por meio”, conservadora, tanto quanto possível, e reformista tanto quanto necessária, para salvar as aparências e a face dos seus principais dirigentes, sabendo nós que a criação de muitos ecoregimes e outras tantas normas de acesso e funcionamento acabam por gerar outras tantas discriminações entre classes de agricultores e empresários, por manifesta desigualdade de cumprimento formal e material, quando, por exemplo, comparamos um micro ou pequeno agricultor com um  médio ou grande empresário?

Como disse, julgo que se abre uma janela de oportunidade para a política pública de desenvolvimento agro rural no quadro da PAC 2030. Julgo que, com a colaboração entre a economia digital, a economia criativa e a economia rural, criamos benefícios de contexto mais favoráveis e abre-se uma imensa avenida para a inteligência coletiva territorial e, em particular, para as figuras de curadoria territorial que gerem o segmento dos bens conjuntos, comuns e comunitários. Ou seja, para lá da provisão pública de infraestruturas e equipamentos e da produção privada de bens alimentares e não-alimentares, muitos deles com pegadas ecológicas muito pesadas, emergirá a coprodução de bens conjuntos e bens comuns, os chamados bens de mérito que serão, justamente, os bens que merecem ser premiados e remunerados pela nova PAC.

Ora, justamente, os geossistemas de base agroecológica e os bens de mérito em modo de coprodução requerem uma alteração substancial das ajudas diretas agora prestadas e, também, uma racionalidade territorial que lhes ofereça os benefícios de contexto mais adequados.

Geossistemas de base agroecológica: a coprodução dos bens de mérito
SAL
Sistemas agroalimentares locais
(Comunidades Locais de Abastecimento)
SAF
Sistemas agroflorestais
(Zonas de intervenção florestal)
SAP
Sistemas agropaisagísticos
(Áreas integradas de gestão paisagística)
SAT
Sistemas agroturísticos
(Condomínios de aldeia)
Fonte: autor

A tabela refere alguns geossistemas (ver, por exemplo, a RCM nº49/2020 de 24 de junho) no seio dos quais pode ter lugar a curadoria territorial e a coprodução de bens de mérito, mas outros exemplos podem ser apontados: as comunidades intermunicipais (CIM) e a mutualização de recursos comuns, a criação da região-cidade e o campo como o seu recurso mais precioso, a reabilitação das estruturas ecológicas municipais para a formação de cinturas verdes e parques agroecológicos urbanos, a formação de comunidades locais de produção de energia renovável, a formação de comunidades locais (ou clubes de produtores) de produção e abastecimento local de alimentos, a formação de comunidades de risco para o combate contra as alterações climáticas e suas consequências, a formação de comunidades locais de habitação, ensino e saúde pública, a formação de comunidades locais (clubes de amigos) de saúde ambiental, a formação de comunidades locais para apoio à sociedade sénior (serviços ambulatórios), a formação de comunidades locais para a gestão de aldeias turísticas e bancos de alojamento local, etc.

Em todos estes casos, a fusão entre a economia digital (a literacia das populações), a economia criativa (a cultura, a universidade e a classe criativa ao serviço do desenvolvimento) e a economia das redes (as plataformas colaborativas e as aplicações de operação) irá estimular a coesão territorial e a economia rural para a criação de um setor novo – a coprodução de bens comuns colaborativos –  que, pela sua responsabilidade, mérito e reputação irá merecer a preferência da nova PAC e uma justa remuneração por via do nosso programa específico de desenvolvimento agro rural para 2030.

Nota Final

Uma nota final para voltar a sublinhar tudo aquilo que, em caso algum, poderemos dispensar durante esta década. Em primeiro lugar, o rejuvenescimento da classe empresarial da agricultura (a sua literacia ecológica e digital e o papel das escolas superiores agrárias); em segundo lugar, a utilidade social do respeito e a responsabilidade ESG (ambiente, sociedade, governação corporativa) de todos os agentes envolvidos; em terceiro lugar, a formação dos parques agroecológicos urbanos que nos lembrará as mudanças paradigmáticas desta década; em quarto lugar, as redes colaborativas interpares de extensão rural e cooperação empresarial; em quinto lugar, a revitalização dos departamentos de formação (literacia ecológica e digital) e extensão rural das direções regionais de agricultura; em sexto lugar, a colaboração dos centros de investigação e desenvolvimento e das suas startups no desenho e experimentação das melhores práticas de economia circular, mas, também, na prevenção e nas operações de mitigação e adaptação. Em todos estes casos, há muito espaço para imaginar várias figuras ICT de curadoria territorial.

Uma nota final, ainda, para salientar a relevância das economias de rede e aglomeração no planeamento e desenvolvimento das atividades agrícolas e rurais e respetivas cadeias de valor. Para tal, é fundamental que, nos níveis regional (NUTS II) e sub-regional (CIM), haja uma coordenação efetiva de todas as medidas de política pública, pois é no quadro regional que os benefícios de contexto ganham escala, massa crítica e pensamento próprio acerca das economias de rede e aglomeração mais indicadas em cada território, seja uma cidade-região, uma região-cidade, um condomínio de aldeias ou uma área integrada de gestão paisagística.

A terminar, uma nota positiva de esperança no nosso futuro imediato. O Governo publicou a RCM nº49/2020 de 24 de junho sobre o programa de transformação da paisagem que contempla quatro instrumentos de intervenção: o programa de reordenamento e gestão da paisagem (1), as áreas integradas de gestão da paisagem (2), os condomínios de aldeias (3), o programa emparcelar para ordenar (4). Entretanto, foram aprovadas 47 áreas integradas de gestão da paisagem com os respetivos programas de transformação. Espero bem que, finalmente, se percebam e apliquem integralmente os ensinamentos de Gonçalo Ribeiro Telles em matéria de paisagem global ou, como aqui eu refiro, uma paisagem composta por geossistemas de base agroecológica, modos de curadoria territorial e a coprodução dos bens de mérito e respetivas remunerações complementares, acopladas ou não aos valores de mercado.

Por último, o meu voto final: que o PEPAC (programa específico no quadro da PAC) não seja mais um arranjo de conveniência visando dissimular a aplicação desigual das ajudas da PAC, que seja, sobretudo, o começo de uma efetiva mudança paradigmática na forma como usamos os recursos naturais e os materiais raros da nossa agricultura e no modo como gerimos a grande transição climático-ecológica e administramos as novas expressões culturais, digitais e criativas que informam, hoje, a coesão do território.