A ideia de que interesses geopolíticos seriam dissolvidos pelo mercado e pelo comércio livre foi defendida por muita boa gente, com o fim da guerra fria, a privatização da internet e a excitação da Organização Mundial do Comércio. Serviu para desistir de afirmar interesses nacionais em assuntos económicos e para atacar quem os defendesse. No entanto, e na melhor das hipóteses, não era mais do que uma versão pós-moderna de cegueira panglossiana. Sem surpresas, é uma ideia em crise. A evidência de que a China não liberaliza o seu sistema político, nem a sua economia, e de que tem a capacidade e a vontade para afirmar interesses económicos e estratégicos opostos aos da União Europeia, ou dos Estados Unidos, deve estar a funcionar para muitas mentes como o terramoto de 1755 terá funcionado para criaturas otimistas do Iluminismo. E isto sem falar da política americana.
Há muitos anos que é difícil interiorizar na política económica de muitos países europeus, incluindo o nosso, uma ideia simples: quando estão em causa interesses geopolíticos e estratégicos, o mercado pode ter de subordinar-se à afirmação do interesse público, ou nacional, como agora parece voltar a estar na moda dizer. Não é preciso governar um grande país, com um grande território e muita gente, para perceber isto. Basta olhar para Singapura.
Ainda assim uma coisa é perceber o problema e outra muito diferente é alguém mexer-se para o resolver. Para isso é necessário começar com uma coisa que agora por vezes se chama estratégia (é abusar da palavra, mas há pior). Parece ser o que falta na União Europeia, apesar das iniciativas com nomes de estratégias e de planos que são produzidas e financiadas regularmente, quase todas com acrónimos para esquecer.
Por azar os resultado são por vezes deprimentes. Na indústria automóvel tem havido coisas assim. Foram estabelecidos objetivos de descarbonização, mas fica a ideia de que não se cuidou de avaliar se a indústria europeia estava em condições de responder, em tempo e em custos, ao longo de toda a cadeia de valor. Parece que se entenderam como mercados livres aqueles em que o Estado chinês resolveu, utilizando o seu poder soberano, apoiar as empresas chinesas para atingirem uma posição de liderança global, com políticas por vezes semelhantes às que também são usadas na UE, mas a uma escala diferente, e assim distorceu a concorrência nos mercados internacionais. Pelos vistos achou-se que era responsabilidade das empresas europeias manter a sua atividade na Europa e assegurar a sua competitividade nos mercados internacionais distorcidos. Para arranhar a ferida também vale dizer que, na prática, se deu ao mercado a tarefa de resolver a tempo e com custo baixo o problema da construção e operação das redes de carregamento. E isto é um problema só do mercado interno. Na cadeia de valor das energias renováveis ou na economia digital também há umas coisas assim.
Por estas e por outras, na Europa precisamos de estratégias de política económica, vá lá, política industrial. Voltamos a enfrentar um problema que muitos países agora desenvolvidos tiveram de resolver no passado: como é que os governos conseguem apoiar o crescimento de empresas e de indústrias de base nacional, para recuperar o seu atraso, mantendo ao mesmo tempo a distância necessária para resolver problemas de falta de informação e de risco moral, salvaguardar o contribuinte ou o consumidor e aprender com os erros? Para os panglossianos, o problema não existe, o mercado resolve e os governos não devem fazer nada. Precisamos de voltar a saber fazer umas coisas mais sérias.