Em nenhuma época do mundo, tal como o conhecemos, houve a possibilidade de parar e pensar. O mundo inteiro parado. Suspenso numa viral incógnita, de olhos arregalados, estupefacto.

Dois meses de time out. Dois meses para renovarmos estratégias, acertarmos tácticas, organizarmos o presente, criarmos o futuro a partir de outros modelos. Sustentáveis. Cooperativos. Tecnologicamente amigáveis na reinvenção até de um Big Brother portátil no smartphone, aliado na saúde e na doença, nos circuitos e nas deslocações, companheiro, ele sim, fidelíssimo. Dois meses para pensarmos. E fizemos pão e bolos.

Voltamos à rua como dela saímos. Cheios de protagonismo. Aborrecidos com um tempo que nos parece ter sido roubado e é preciso compensar. Continuamos enormes na pegada que deixamos no carbono como na calçada que, alguns terão reparado, já tem erva entre as pedras – coisa rara desde há anos, quando passou a ser espezinhada sem descanso, noite e dia e nos intervalos de crepúsculo.

Foram os milhões de passos que a poliram que lhe trouxeram prédios recuperados, ruas alcatifadas, sorrisos airbnb porta sim porta sim, esplanadas a abarrotar de comida pré-cozinhada, o fado consumido às colheradas, tuk-tuks importados de países exóticos a derraparem nas colinas – sete, dizem. E a cidade a deixar de se ouvir, a desaparecer sob os amortecedores de borracha em dupla camada, implacáveis. O ritmo da cidade a acompanhar os gigantescos cruzeiros de milhares de uma só vez, os voos low cost, os pacotes promocionais e as diárias a preços competitivos entre vizinhos. E nós, que a habitávamos, empurrados para fora, devagar, sem querer: ai desculpe, não sabia que estava aí. Ah, quer ver a casa? Mas olhe que é cara, os anteriores inquilinos eram franceses….

E o ruído, o imenso ruído de uma cidade que já não consegue parar, os escapes, as buzinas, as colunas com música por cima das vozes e as vozes em línguas conhecidas e desconhecidas.

Parámos de repente. A cidade encheu-se de silêncio e ervas por entre a calçada. Uma cidade ainda mais bonita escondida atrás do dia-a-dia turístico, das insustentáveis filas no trânsito, atrás do trabalho e da correria para o colégio, atrás dos autocarros cheios de gente e de fumo, a cidade escondida, revelou-se. Há uma cidade revelada e ruas de árvores primaveris. E nós em casa a fazer pão e bolos. Também a cidade tem de ser repensada e o seu turismo, antes salvífico, tem de ser repensado. À cidade que se nos mostrou nesta primavera, e é nossa, devemos-lhe um tempo de reflexão – vamos excluir-nos dessa construção futura? E como nos incluímos?

Fizemos pão e fizemos bolos. E com a mesma garra com que esgotámos o fermento nos supermercados, recuperámos a tele-escola, saltámos ao eixo nos corredores de casa, fizemos batalhas de almofadas e desafiámos Pokémons para o combate. Aderimos ao Zoom para manter a família e os amigos perto. Reinventámos o trabalho. Recriámos empresas, costurámos máscaras e imprimimos viseiras em 3D. Houve até quem, ao fim de trinta e dois anos de carreira no ensino, fosse de carro pelo campo, à procura de rede para poder dar aulas de história ao quinto ano, numa sala improvisada na bagageira. Estes somos nós. Já fizemos pão, já fizemos bolos. Decerto podemos pensar um país.

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