As relações entre a empresa RTP e o seu accionista, o Estado (representado, para efeitos de decisão, pelo Governo), deixaram de ser visíveis a olho nu durante a última década. Começou com a autonomia do Conselho de Administração; prosseguiu com o trespasse dos últimos restos da tutela para um Conselho Geral Independente, onde o Governo não nomeia mais do que dois vogais em seis. Estas operações acabaram por gerar a interrogação favorita de Humpty Dumpty: quem manda? Não se percebia. A Administração? O Conselho Geral? Ainda o Governo?

A Administração forçou uma resposta, ao confrontar o Conselho Geral com o facto consumado da compra, em concorrência com uma estação privada, das emissões da Liga dos Campeões. O sentido da manobra era óbvio: tratava-se de diminuir o Conselho Geral, ainda antes de este entrar em funções. Provocou, como se previa, uma crise de responsabilidades. O Governo não se permitiu mais do que algumas opiniões avulsas, até o Conselho Geral ser forçado a tomar a única decisão que não acarretaria a sua autoliquidação imediata: a proposta de demissão de uma Administração que, entretanto, mobilizara as direcções internas e apelara para a Entidade Reguladora (ERC).

Este episódio suscita várias questões. A primeira é perceber a curiosa insistência dos governos em “desgovernamentalizar” a RTP. Haverá certamente boas intenções, mas acima de tudo, há isto: com dois canais generalistas privados, vários canais noticiosos de cabo e ainda a internet, a RTP, enquanto veículo de propaganda, deixou de fazer sentido para os nossos governantes. A RTP como órgão governamental só importava quando, como única estação de televisão em Portugal, deixava à disposição do conselho de ministros o único meio de comunicação verdadeiramente nacional.

Foi assim que a RTP nasceu durante a ditadura, e foi assim que cresceu nos primeiros anos da democracia: uma espécie de newsletter ministerial, decorada com algum entretenimento e uns esforços de divulgação erudita. Por vezes, havia veleidades, faziam-se experiências, mas sem desvios na natureza do empreendimento. Quando passou a haver concorrência, tudo mudou: uma RTP que continuasse a ser a montra do governo, seria imediatamente um canal sem audiência. A RTP, com os seus défices e as recorrentes acusações de interferência ministerial, tornou-se um fardo financeiro e político.

A ideologia tem ditado a identificação do “serviço público” com a RTP, impedindo outras soluções. Mas entretanto os governos foram redefinindo a RTP como “empresa” (do ponto de vista da gestão e equilíbrio financeiro) e carregaram na “autonomia”, de forma a alijar responsabilidades. Como é óbvio, a RTP não se transformou numa BBC, pela mesma razão de que o Pravda nunca poderia vir a ser o New York Times: não tem, para isso, nem a cultura nem o espírito. O que aconteceu foi outra coisa: a empresarialização e a autonomia tiveram como efeito principal suscitar, dentro da RTP, caprichos de concorrência directa com as outras estações privadas, e nos mesmos termos destas. A RTP é hoje uma excentricidade: uma empresa “privatizada” a favor de quem lá está, com uma lógica simplesmente comercial, mas paga pelos contribuintes.

Deveríamos talvez discutir se é legítimo para um Governo abdicar de responsabilidades onde há dinheiros públicos. Mas antes disso, poderemos perguntar: qual a razão de ser da RTP? Já não é o Pravda, e nunca será a BBC. Não serve hoje para propaganda directa dos governos, nem alguma vez servirá para estabelecer um padrão de qualidade elevada no audiovisual. Mas pode servir, quando os governos quiserem, para condicionar e influenciar, num mercado pequeno, os outros operadores privados de televisão: não só porque a RTP lhes disputa mercado, mas porque se presta a funcionar como um factor de incerteza: vai ser privatizada, ou não vai ser privatizada?; vai ter mais publicidade, ou menos publicidade? Estas meras possibilidades são suficientes para um ministro suscitar na indústria os receios e as expectativas mais convenientes à causa governamental. A interferência e a pressão que noutras épocas governos brutais realizaram através dos gabinetes, podem hoje ser praticadas, por governos habilidosos, através do mercado. Por mais independente que seja, a RTP nunca será mais do que um instrumento do poder político. Ninguém escapa ao seu destino.

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