Escrevo-lhe, sra. ministra, por causa dos artistas e por este mundo que sonhamos. Cada artista é um mundo inteiro dentro de si. Porque há dias em que tudo dói e desmorona, o vazio cresce, incessante, como uma corrente de lágrimas que mareja o olhar. Nada faz sentido e, ainda assim, continuamos. É no feixe de desejos desencontrados que o artista se divide para que a sua obra possa transformar o mundo, transfigurando a dor em beleza e, por vezes, em bondade. Pode-se acreditar, ou não, que dentro de cada homem há uma obra por realizar. Para o artista, apenas o impossível é sinónimo de ser criador de mundos. Fazer o possível é da esfera “do que todos os bichos fazem”, como sugere Agostinho da Silva. Hoje em dia, além dos bichos, dos artistas e dos homens, acrescentam-se os computadores e os algoritmos à equação. Também estes parecem desejar a condição de criadores. Tolstói afirmava que “a arte não é um artesanato, é a transmissão de sentimentos que o artista experimentou”.

Sra. ministra, a arte não é mera cópia de modelos anteriormente realizados. A vida dos artistas é a base imaterial de onde tudo nasce. Para que haja artistas e obras de arte, deve existir um conjunto de condições que lhes permita (sobre)viver neste mundo. A si, sra. ministra, compete-lhe gerir a Cultura neste país de valioso património. Mas e a história do futuro de que fala o nosso Padre António Vieira? Acredito, sra. ministra, que o fruído de obras de arte deve, também, cultivar uma potência criadora para poder atingir uma cultura superior. O trabalho sobre a fantasia deve prevalecer sobre o trabalho de recolha de dados e memórias, de acumulação de gestos e hábitos repetidos.

É provável que nem todos estejam de acordo com esta definição de artista. O que defendo é que, apesar dos erros e acidentes fazerem parte integrante do percurso de um criador, há um investimento de algo indizível e inaudito que é profundamente humano nas obras de arte. E esse labor sobre o humano que a arte preserva para si, nenhuma outra disciplina do conhecimento consegue alcançar. Com isto, não quero dizer que a utilização de novas tecnologias não possa transformar o que hoje conhecemos e damos o nome de arte. Mas o que é, hoje, o artista? O que se espera dele em termos da sociedade que o acolhe e o financia? Qual é o propósito maior de continuar a fazer objectos de arte ou algo que se lhe aproxime? Existe um objectivo social colectivo neste trabalho? Fernando Pessoa compreendeu que “o facto mais importante da vida de uma sociedade é a produção de homens de génio, de criadores”. Ser criador é um propósito maior que faz parte do desígnio de um povo. Um artista é como um anzol, que do fundo da alma e do corpo traz à tona pedaços de nada ou de alguma coisa. O incerto é trocado pelo certo e apenas o tentar é inabalável.

Estas interrogações são fulcrais. Entre o povo e o artista estabelecem-se relações que fazem emergir os defeitos e fraquezas do nosso tempo na forma de objectos artísticos. Diz Agostinho da Silva que “o criador é uma espécie de monstro em que há o homem e o outro; quem desanima, quem se abate, quem chora é o homem: o outro, se é grande, até os desesperos utiliza. O essencial é que nunca o homem traia o artista, que a troco de uma felicidade que tanta gente tem se perca a obra que ninguém mais poderia realizar”. Esta sublimação do tempo e do contexto é fruto do trabalho do criador e da obra que existe dentro de si — alquimia entre obra, corpo e alma do artista, em diálogo com o seu tempo. Assim, sra. ministra, é urgente, antes de algo mais, tudo investir no ser humano. No dia de hoje, que é já o de amanhã, no futuro e nos artistas, que são garantia que alguma coisa se está a fazer todos os dias para ir escalando a nossa montanha, com erros, acidentes, enganos e quedas, mas, por certo, em direcção a essa “cultura elevada” que todos merecemos.

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