Recentemente, na sequência de um infeliz incêndio num edifício na Mouraria, onde morreram duas pessoas e outros 14 ficaram feridos, assistimos a uma sequência de declarações e debates sobre qual deve ser a nossa política migratória. Mais uma vez, o incêndio expôs, o que anteriores casos, como as condições de trabalho em Odemira ou outros incêndios passados, já haviam demonstrado: as miseráveis condições de habitação e trabalho a que muitos imigrantes se sujeitam quando vêm para o nosso país. No caso mais recente, devido em parte aos elevados preços da habitação em Lisboa, ficamos a saber que é comum apartamentos serem ilegalmente subarrendados a mais de vinte pessoas.

Face aos acontecimentos na Mouraria, Carlos Moedas afirmou que determinadas áreas de Lisboa estão sobrelotadas e que, ao contrário dos refugiados, que devemos sempre receber, o Estado Português deveria criar contingentes de imigração anuais, restringindo a imigração àqueles que já possuem contrato de trabalho. Naturalmente, na prática, isto implica seleccionar imigrantes de rendimentos ou qualificações relativamente elevadas. Não é verosímil que imigrantes de baixos rendimentos que vêm para Portugal para trabalhar em empregos de baixas qualificações (como na restauração, transporte, comércio, ou todo o tipo de trabalhos manuais) consigam obter um contrato de trabalho com meses de antecedência, com empresas locais portuguesas, muitas vezes muito pequenas, a milhares de quilómetros de distância. Marcelo Rebelo de Sousa condenou as declarações de Carlos Moedas e Luís Montenegro. A oposição de esquerda na Assembleia Municipal de Lisboa rapidamente se apressou também a condenar as declarações do Presidente da Câmara de Lisboa.

No meio de todas estas declarações, duas coisas ficaram por esclarecer. Primeiro, pelo menos que eu tenha reparado, ninguém propôs soluções e políticas públicas concretas para impedir e controlar o subarrendamento ilegal, contratos de trabalho ilegais, ou mesmo para investigar e conter redes de tráfico humano que funcionam através da manutenção dos imigrantes permanentemente endividados. Também ninguém propôs medidas concretas para tentar combater a segregação habitacional, social e linguística que muitas vezes se acaba por instalar entre quem vem e quem recebe. A imigração é, na minha opinião, positiva, mas pode trazer consigo novos problemas sociais que precisam de ser tratados e não ignorados.

Na ausência de discussão sobre políticas públicas no debate público, em Portugal fala-se em termos abstratos ou simbólicos sobre imigração. A maioria dos actores políticos e sociais defende a imigração numa lógica quase sempre de interesses financeiro e económicos imediatos. Nós, os portugueses, devemos receber imigrantes ricos – nómadas digitais, reformados europeus, ou investidores estrangeiros (e até lhes concedemos incentivos fiscais) – porque precisamos do dinheiro deles. Nós devemos receber imigrantes pobres porque eles querem (ou não têm alternativa…) ocupar empregos que nós, os nativos, não queremos. E, um argumento muito frequente, nós os portugueses, com uma população a envelhecer a passos largos, precisamos deles na população activa para sustentar o nosso sistema de Segurança Social (claro que “eles”, a partir do momento em que contribuem, também têm direito a receber desse mesmo sistema).

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E se nós não “precisássemos” deles de forma tão óbvia e imediata? E se fôssemos um país sem problemas económicos e financeiros e com uma população activa em proporção perfeitamente capaz de sustentar o sistema de pensões? Nesse caso, já não precisaríamos deles e poderíamos ignorá-los ou descartá-los? O meu incómodo com este tipo de pensamento é, por um lado, a lógica completamente instrumental que pretende “usar” os imigrantes para nosso benefício imediato. Por outro lado, na base destas justificações permanece sempre uma dicotomia nós-eles, em que os nativos e os imigrantes se mantêm sempre – e manter-se-ão no futuro – como grupos separados e estanques.

Não sou ingénua. Sei que a maioria das pessoas e dos países se move por uma lógica de interesse próprio material e que alguns dos grandes benefícios da imigração são económicos. No entanto, quero realçar formas alternativas de ver para que “serve” a imigração.

Começando pela lógica económica, tão cara a todos, os imigrantes não servem apenas para colmatar os nossos desastres financeiros imediatos. Os imigrantes trazem com eles capital humano e físico, bem como novas redes sociais e profissionais, muitas vezes com ligações a outros países. Frequentemente, constroem negócios bem-sucedidos, que se tornam fundamentais ou inovadores no nosso território, formando ligações com outras empresas e trabalhadores portugueses e que em conjunto melhoram a nossa vida em sociedade. Os imigrantes integram empresas nacionais onde as suas ideias e qualificações complementam outros trabalhadores nativos. Isto é, estes imigrantes não estão nas empresas simplesmente em substituição de trabalhadores nacionais em falta. Com a sua presença, com experiências de vida, percursos educacionais, ideias e vivências culturais diferentes, a população como um todo poderá ficar melhor, melhor do que ambas as partes ficariam em separado. Essas empresas poderão ter uma performance melhor ou mais inovadora do que se eles ali não estivessem.

Da mesma forma, nas universidades, os imigrantes frequentemente trazem especializações diferentes que não só lançam novas áreas de investigação, como podem atrair pessoas e recursos que de outra forma nunca iriam para ali. Em geral, não creio ser possível prever de antemão quais as inovações e mudanças exactas de que uma sociedade beneficiará por receber imigrantes, pelo que creio que tentar pré-fabricar e pré-seleccionar com precisão quais os tipos de imigrantes que devemos receber é uma estratégia errada. A melhor estratégia parece-me ser receber uma diversidade grande de imigrantes – em qualificações e origens – e esperar pelos resultados das interacções. Afinal de contas, não é possível prever a priori quais os conhecimentos e ideias que se tornarão úteis no futuro.

Mas, para além desta lógica, há outras ainda que justificam a imigração. Evidentemente, a maioria das pessoas que imigra fá-lo porque quer melhorar as suas condições de vida, isto é, busca mais dignidade para si e para as suas famílias. Será ético colocar entraves a estes desejos? A imigração serve ainda muitas vezes como mecanismo de redistribuição de rendimentos global e potencia outras ligações económicas e culturais entre os países. Sabemos ainda que a imigração e as remessas que estes enviam são frequentemente uma força pró-democrática em países autoritários (como foram em Portugal) e uma força que traz novas ideias e práticas políticas e mais autonomia dessas populações face aos ditadores que as governam.  E, claro, sabemos que muitas das melhores conquistas da humanidade foram produto do cosmopolitismo e não do nacionalismo isolacionista. Os estudos mostram, por exemplo, que a ciência nos Estados Unidos saiu prejudicada, quando, nos anos 20, se estabeleceram quotas de imigração para nacionalidades “indesejadas” do Sul e Leste Europeus naquele país. Pelo contrário, a investigação científica norte-americana beneficiou significativamente com o influxo de refugiados judeus expulsos da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Não me parece que seja um acaso. Se lermos os melhores trabalhos de investigação sobre a natureza da inovação e criatividade, percebemos que esta consiste, no fundamental, em criar ligações entre ramos ou conhecimentos antes separados. Torna-se, então, evidente que interligar redes previamente distintas aumentará a probabilidade desta inovação acontecer.

Face a tudo isto, parece-me que precisamos de uma nova atitude, mais focada no longo-prazo, face à imigração. Em primeiro lugar, nunca seremos bem-sucedidos enquanto continuarmos a olhar para os imigrantes apenas como um grupo de estrangeiros que vem para nos transferir dinheiro ou outro qualquer recurso do qual precisamos para resolver os nossos problemas financeiros. Em segundo lugar, as políticas de imigração também não serão bem-sucedidas com um total laissez faire face às questões redistributivas e problemas sociais que muitas vezes a acompanha e que precisam de ser resolvidos.