Pode ser impressão minha, mas sinto uma estranha acalmia nas habitualmente revoltas águas da política nacional. As controvérsias chegam e vão com ainda mais leveza do que a espuma dos dias, sinto menos tolerância para com os discursos inflamados e tremendistas, maior previsibilidade nos debates parlamentares e aquela sensação estranha que até quem tem de arranjar todos os dias um tema para os fóruns radiofónicos ou televisivos anda a dar pinotes à imaginação.

Bem sei que a crise grega desviou as atenções para outras paragens – e desviou muito bem, pois uma parte do nosso destino jogou-se entre Bruxelas, Berlim e Atenas –, mas suspeito que há mais, que há sobretudo algum cansaço pela repetição de discursos políticos que parecem não se alterar mês atrás de mês. Até quando, no domingo à noite, uma parte do país se senta em frente da televisão para a homília do professor Marcelo, fá-lo com a sensação de déjà vu, de que até quase seria capaz de adivinhar o número de vezes em que falará de “erros de comunicação” ou de “falta de planeamento”. Mesmo folhetins que ainda há pouco apaixonavam a opinião pública, como o inquérito ao BES ou as visitas à prisão de Évora, parecem estar naquela fase das telenovelas onde se pode ficar uma semana sem ver nenhum episódio que não se perderá o fio à meada.

Como se tudo isto não fosse suficiente nem sequer aquele que foi apresentado como “o novo Messias”, António Costa, só tem conseguido distinguir-se pela sua habilidade, indiscutível, em evitar comprometer-se seja com o que for.

Ora como a Natureza tem horror ao vazio, a política tem horror ao silêncio e à calmaria. E se é necessário agitar as águas, então fale-se de presidenciais. Mesmo quando faz muito pouco sentido aquilo que se diz e aquilo que se propõe.

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Tal como há dez anos, quando todos os astros se conjugaram para um passeio triunfal de Cavaco Silva, desta vez os cálculos políticos também pareciam alinhados: seria a vez de António Guterres. Só que, parece, o próprio não tem esses planos, o que devo dizer que não me surpreende: a missão do próximo Presidente adivinha-se difícil, espinhosa e, porventura, pouco recompensadora.

Recapitulemos um pouco. O primeiro Presidente eleito democraticamente, Ramalho Eanes, não deixou de ter um importante papel, com altos e baixos, mais a gosto ou mais a contragosto, na normalização da vida política e na saída dos militares da vida política. O segundo Presidente, Mário Soares, foi muito importante na pacificação do regime e a habituar-nos a que os vários poderes se devem equilibrar e vigiar. O terceiro Presidente, Jorge Sampaio, parecia destinado a um mandato tranquilo, mas acabou por presidir ao período em que Portugal entrou no “pântano” e, sendo um institucionalista, acabou a dissolver um Parlamento onde existia uma maioria absoluta. O quarto Presidente, Cavaco Silva, provou que era possível chegar à Presidência vindo da direita política e teve de enfrentar o período da maior crise económica e de mais desconfiança nas instituições. Mesmo assim terá sido o que cumpriu mais à letra os limites das suas competências, mesmo nas críticas de alguns discursos e no desconforto de alguns vetos.

Como será o quinto Presidente? O desafio não é pequeno, pois não devemos ter ilusões. O país não vai sair da crise por milagre, antes vai continuar por muitos anos a ter de gerir com imenso cuidado e parcimónia as suas contas públicas – para não dizer a gerir de forma austera. Se há sinais de erosão dos grandes partidos que foram, até agora, a espinha dorsal do regime democrático, não há sinais de que venha a ser fácil formar governos maioritários em tempos em que eles podem ser mais necessários do que nunca. Tudo isto sem esquecer que os problemas europeus estão longe de estar ultrapassados e, aqui ao lado, a Espanha pode viver uma crise constitucional. É, mesmo para o Chefe de Estado de um regime semi-presidencialista, um caderno de encargos pesado.

Sendo os tempos difíceis, não deixa de ser surpreendente a forma como temos vindo a assistir a uma espécie de jogo do gato e do rato entre diferentes proto-candidatos, a maior parte dos quais (a totalidade?) não nos inspira um mínimo de confiança.

Excluindo Guterres, quase todos os nomes que vão surgindo têm apenas uma coisa em comum: são comentadores televisivos. Marcelo, claro está, o príncipe da especialidade. Mas também Santana Lopes. Ou a eterna dona Constança, também conhecida por António Vitorino. E agora, saída da cartola de um socialista, Manuela Ferreira Leite. Não tarda estão a falar-nos de Bagão Félix ou de um repetente, Francisco Louçã. O mais paradoxal é que sobram poucos nomes na roleta das especulações para além destes (Rui Rio? Sampaio da Nóvoa? Carvalho da Silva?).

Não nos enganemos: há uma enorme perversidade neste processo. E preocupantes sinais de menoridade política.

A primeira perversidade é anterior às especulações presidenciais, pois deriva directamente deste hábito nacional, sem paralelo no mundo civilizado, de eleger como comentadores televisivos políticos na reserva, na reforma ou apenas numa qualquer travessia do deserto entre dois lugares públicos. Os dados que vou citar são de 2013 e não sei se existem alguns mais recentes, mas nessa altura havia nos vários canais de televisão 69 horas de comentário político por semana, quase dez horas por dia em média – não creio que esse número seja muito diferente hoje. Mas o mais relevante é que dois terços dos comentadores residentes, os com programas semanais, eram políticos – no activo ou de pousio. Mais: um décimo dos deputados também passam regularmente por programas de comentário ou de “debate”, essas espécies de paródia em miniatura da vida parlamentar que muitas televisões gostam de reproduzir em estúdio.

Isto não é, nem nunca foi, jornalismo. É mais preguiça. É mais a procura da facilidade de encontrar sempre nesses comentários um soundbite que dê para reproduzir nos noticiários que vêm a seguir. Não é, ou quase nunca é, um espaço de esclarecimento ou de debate descomprometido, independente de agendas pessoais ou partidárias.

Mas isto também não é política, ou pelo menos não é política séria. Umas vezes é espectáculo, outras um palco de ambições e vaidades pessoais, nalguns casos apenas uma ocasião para ajustar contas. Raras vezes há ali distanciamento ou independência, quase sempre há apenas o calculismo de quem, tendo sido político, político continua a ser, isto é, alguém que se preocupa mais com a sua popularidade do que com a sua sinceridade.

Quando o nosso universo de “presidenciáveis”, sobretudo num momento tão crítico como este, está quase reduzido a este pequeno mundo dos que “existem porque vão à televisão” é porque alguma coisa vai mal. E se sabemos que há sempre uma parte de jogo e encenação (e dissimulação) na preparação de uma candidatura presidencial, a pobreza dos cenários já conhecidos é deprimente. No mínimo.

Nos partidos, compreensivelmente preocupados com as eleições legislativas, qualquer ousadia parece proibida, o tempo é o do mais frio calculismo, uma forma de fazer política que parece estar a conhecer novas e insuspeitas dimensões com o estilo António Costa. O que deixa, infelizmente, espaço disponível para os mais audazes, para não lhes chamar apenas aventureiros, como é o caso de Santana Lopes. Se ele está no palco, com tudo o que sabemos do seu passado político, é porque, mais uma vez, a natureza e a política têm horror ao vazio, e há quem saiba tirar proveito disso.