Em pequena, quase todas as noites antes de me deitar, tinha a imagem nítida de uma mão monstruosa que me agarraria pelo tornozelo assim que chegasse à cama. Nunca pensei que fosse um monstro comunista, mas tinha ouvido alguém contar que os comunistas comiam crianças ao pequeno-almoço. Quando passei a ter altura para acender a luz do quarto antes de chegar à cama, a imagem do monstro ameaçador foi-se esbatendo até ser só uma memória. Já a do comunismo não. Cruzei-me várias vezes com ele e com o seu efeito sobre quem o havia vivido.

Tinha vinte e oito anos quando estive em Cuba. Fui com uma amiga polaca que, então, vivia em Estocolmo. Nessa altura não havia internet, os telefones públicos eram raros, os estrangeiros só podiam utilizar pesos cubanos convertíveis, equivalentes ao dólar, e  abastecer-se em sítios específicos para turistas. Apenas os hotéis ou os restaurantes estatais estavam autorizados a vender peixe e marisco, produto pescado exclusivamente por barcos estatais, os únicos a poder navegar naquelas águas. Em Havana, ao longo do Malecón, o paredão de cerca de 8 km de comprimento que acompanha o mar, viam-se rapazes a usar a câmara de ar como barco. Alguns fugiam nesses pequenos navios de cauchu, com um remo e um rasgo de sorte até Miami. Os que ficavam, pescavam apesar do risco. O marisco, ilegal, era proposto por uns quantos corajosos proprietários de Paladares, casas particulares com autorização para funcionarem como restaurantes familiares, de forma rápida, em voz baixa, entre o anúncio da ementa, quase sempre composta de feijão e frango: “Quieres langosta? Pescado?”

Depois de uns dias em Havana alugámos um carro e fomos, fora dos circuitos turísticos, até Santiago de Cuba, a cerca de 900km, um pouco mais com os desvios. A rota principal, a autopista  nacional, era um tapete esburacado com algumas crateras gigantes que tínhamos de atravessar em primeira para não partir o eixo do carro. Ao por do sol, por entre nuvens de mosquitos, centenas de pessoas enchiam a estrada a caminho de casa, a pé, de bicicleta, nos atrelados dos tratores, e raramente com luzes. A escuridão era total. Acreditar que podíamos chegar a algum lado sem atropelar pessoa ou animal era um acto de fé. Encontrar um sítio para ficar, era outro. Tudo se negociava: a dormida, a comida, o parqueamento e a vigilância do carro durante a noite. (Tudo, excepto a minha amiga responder em russo quando assim interpelada ao saberem que ela era polaca. Ela, que tivera o russo como língua obrigatória na infância, recusava-se a falá-lo, mesmo que tal pudesse facilitar a negociação) A necessidade fundava a economia paralela como saída para a miséria imposta pelo conflito entre a crença desmedida num regime e as sanções económicas internacionais, que estrangulavam uma população inteira.

Num dos dias de viagem, na casa da família que nos recebeu, jantámos minúsculos peixes fritos, apanhados do lago em frente. Quando fui buscar o dinheiro para pagar a refeição, a minha bomba da asma caiu da mala. E logo a mãe recusou o dinheiro em troca da bomba para o filho. Nem toda a escuridão se acaba com o interruptor e há muitas maneiras de comer criancinhas.

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