No âmago das reinvenções da contemporaneidade está a Seita, excrescência religiosa que ganhou rostos e vestes laicas e um poder de quem navega sobre o mar das vidas comuns com inquestionável direito a derramar crude. Ainda aguardamos por uma geração capaz de estancar a fonte poluidora para permitir que, finalmente, as demais cruzem a mancha tóxica enquanto esta se dilui.

Mas nada muda e a contaminação continua a atacar com particular virulência o nervo central da espécie. Resta aos comuns mortais tentar colocar a cabeça de fora das águas poluídas apenas para suavizarem a intoxicação. A luta pela liberdade desceu ao nível do mero instinto animal de sobrevivência.

Pertenço a uma das gerações às quais a Seita impôs a ‘libertação da opressão’. À época era urgentíssimo acabar com o ‘colonialismo’. Passou meio século e peças desconjuntadas de sociedades inteiras, cadáveres incluídos, não param de flutuar no tsunami poluidor que foi arrasando todo o meu continente natal e hoje espraia-se com violência nas margens do continente vizinho. Indiferente, a Seita insiste em manter-se na crista da onda da ‘libertação dos oprimidos’ içando mais e mais a bandeira do seu profundo ‘humanismo’ que Lhe permite forçar terceiros a colher tempestades de ventos que ela mesma semeou. A Seita, que nunca se coibiu de recorrer a escudos humanos nas suas ‘campanhas justiceiras’, vai perdendo a vergonha de alastrar a face mais sórdida dessas práticas à sua própria casa ao apoiar a viagem e instrumentalizar a chegada dos novos navios negreiros que descarregam sem dignidade, sem lei e de forma ostensivamente provocatória destroços humanos das suas aventuras tropicais ao longo de décadas.

Entretanto, a Seita havia imposto fórmulas urgentes de vitórias e mais vitórias dos países explorados sobre os países opressores. A caricatura está na visita do presidente do então novo país subdesenvolvido à mais poderosa superpotência da época onde descobriu que por lá trabalhavam vinte e quatro horas por dia e, no regresso, impôs que ‘A partir de hoje!’ a sua amada pátria revolucionária iria passar a trabalhar vinte e cinco horas por dia e a ultrapassagem da superpotência era uma questão de tempo. A variante no hemisfério norte foi a urgência de impedir que ‘os ricos ficassem com tudo o que era do povo’ que, assim, nunca se libertaria da pobreza cultural, social, económica. A Seita impôs um Estado intrometido em tudo e mais alguma e que cumprisse o sagrado desígnio de ser ele a investir, investir, investir, com e sem recursos. A vida passa e, na mancha poluidora, não param de emergir destroços de misérias, epidemias, famílias desconjuntadas, anomia, dívidas públicas colossais, património urbanístico arruinado e uma volumosa bola de impostos inutilizada na massa densa de crude. Sem remorsos e muito menos arrependimentos, a Seita quer mais e mais, agora combater o ‘neoliberalismo’, a especulação financeira, os mercados aos quais exige ‘Queremos as nossas vidas de volta!’

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A Seita – sempre pronta a denegrir pela denúncia o passado anterior à sua própria existência – nunca se ensaiou em impor uma nova escola participativa que ‘libertaria’ os povos, na origem, de malformações mentais herdadas de um tempo de trevas com o qual era urgente romper. À medida que a mancha de crude foi trespassando as paredes das escolas quem por lá sobrevive vê-se forçado a especializar-se mais a mais no desvio dos destroços da indisciplina, violência, depressões, ruído. A Seita reage tornando ainda mais sagrado o farol-guia da sua navegação, agora orientado para a escola ‘inclusiva’ com ‘flexibilidade curricular’ e sem exames, os últimos uma imposição corrosiva da ‘boa’ e ‘autêntica’ relação pedagógica.

A Seita diverte-se ao mesmo tempo e cada vez mais surfando a nazarena onda feminista ou femista (sic) que ‘libertará’ as mulheres de milhões de anos de opressão masculina, dilúvio que, por arrasto, lavará a espécie de todos os pecados das opressões sexuais. Os dias passam e na mancha de crude já flutuam seres deformados pela poluição cuja cabeça vive enfiada no seu próprio baixo-ventre onde buscam loucamente o centro do universo.

No refluxo desta vaga talvez venha a celebração da páscoa, a recordação da navegação originária que fundou a Seita, o momento em que no deserto académico recebeu o mandamento sagrado de criar o ‘Homem Novo’, mas que obrigou a exegese a clarificar o significado profundo da originária palavra santa, criar o ‘Género Novo’. A causa terá sido um mero mero lapso do Criador que, muito atarefado nos primórdios, terá omitido a criação também da ‘Mulher Nova’ ou, com muitíssimo mais rigor, a criação da ‘Multi-Identidade-Variável-Inclusiva-de-Género’.

O “chato” que gritava nos ouvidos de Raul Seixas “Pare o mundo que eu quero descer!” talvez tivesse razão. Nada falta para habitarmos no Planeta-Manicómio.