A prevenção do abuso sexual de crianças não se alcança numa conversa, num dia ou numa sessão escolar de 30 minutos. A prevenção não é um processo fácil e, por essa mesma razão, não pode ser resumida a regras simplistas que responsabilizam a criança nos vários momentos do abuso. No entanto, a verdade é que há inúmeras iniciativas e programas de prevenção primária que incidem erradamente nestes pressupostos, como se fosse obrigação da criança garantir a própria segurança. Não é. Enquanto pais sabemos que não é assim. Somos nós, os adultos cuidadores, que temos de zelar pelo bem-estar das crianças e pela segurança das mesmas.

As medidas de prevenção que ensinam às crianças que, em caso de abuso, elas “podem sair”, “fugir do adulto”, devem gritar “não” ou dizer ao adulto para parar, são absolutamente irrealistas e, por isso, muito problemáticas. Estas medidas ignoram as circunstâncias em que a violência sexual acontece ou como os abusadores detêm total controlo das vítimas. Ignoram também como os abusadores chegam às crianças e as silenciam durante anos e décadas e várias outras questões centrais a este tema. Peço que reflita um pouco: acredita que uma criança de cinco anos pode fugir de um adulto? Como poderá ela parar um abusador ou simplesmente sair do contexto do abuso? Não pode. Por isso não podemos aceitar intervenções em escolas, com crianças do primeiro ciclo, a dizer-lhes que devem evitar o abuso seguindo estas regras. Para quem trabalha na área do abuso sexual de crianças, sabe que é uma expectativa desconectada da realidade e potencialmente danosa.

Somos nós, os adultos, que temos de garantir a segurança das crianças. Sim, podemos e devemos envolvê-las na prevenção, mas com uma abordagem adaptada ao desenvolvimento delas e nunca, mas nunca, responsabilizá-las pela prevenção do abuso. Quando se responsabiliza as crianças pela sua própria proteção, dizendo-lhes como elas devem evitar o abuso, uma das consequências é acentuar a auto responsabilização. Em caso de abuso, poderá intensificar sentimentos de culpa, comuns nos processos traumáticos, já que a criança falhou e não cumpriu com as “simples” regras de dizer “não” ao abusador e fugir dele. Não se pode colocar o peso desta responsabilidade nas crianças.

Gostava muito que fosse possível trabalhar com as crianças e ensinar como evitarem ser vítimas de abuso sexual e que fosse exequível fazê-lo em sessões de 30 minutos. Mas não é. Infelizmente para nós e, claro, para as crianças, não é esta a realidade. Refiro isto, não para assustar os pais e mães, mas para que haja uma tomada de consciência real daquilo que podem fazer enquanto cuidadores e qual o seu papel.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sei o quão tentador é acreditarmos em medidas simplistas que prometem resultados imediatos, mas estas regras acabam por criar uma maior vulnerabilidade nas famílias e em particular nas crianças. Criam nos pais e mães uma falsa sensação de segurança relativamente às proteção das dos filhos e das filhas. Correm o risco de acreditar que elas aprenderam a lição com quatro simples regras e que estão protegidas. Não estão. A prevenção é um trabalho continuado, longo e que acompanha o crescimento e o desenvolvimento da criança. Requer vários momentos de conversa e de diálogo com ela, escutar as suas questões, responder ao que precisa de saber e esclarecer as dúvidas que apresenta.

Os abusadores tendem a envolver as crianças numa relação especial. Aproximam-se cuidadosamente das vítimas, vão manipulando as crianças e também — tomem especial atenção — os pais e as mães. Não são desconhecidos com ar perigoso, repugnante e que podemos identificar facilmente. São pessoas próximas em quem confiamos. Muitos abusadores não interagem de imediato com toques físicos, invasivos ou de cariz sexualizado. Vão testando, aos poucos, os limites das crianças, até que elas vão naturalizando determinados comportamentos como normais (ex: uma carícia no braço que se demora aquando de um cumprimento). Toda a interação dos abusadores com as crianças é pensada e calculada. Nada é deixado ao acaso. A ideia de um abuso sexual óbvio e violento, que as crianças compreendem de imediato o que se trata, não representa a maioria dos casos.

A verdade é que na maioria dos casos de abuso sexual de crianças elas não entendem o que está a passar, não sabem identificar o abuso como nós os adultos o percecionamos. Por estes, e por vários outros motivos, não podemos exigir que as crianças sejam as responsáveis pela prevenção e pela própria segurança. É uma imposição virtualmente impossível de corresponder e demasiado cara para as crianças.

Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.