Paris, sexta-feira, 13 de novembro de 2015. Mais uma vez o quotidiano de gente comum foi invadido pela morte gratuita. Acima de uma centena de cadáveres num dos corações do Ocidente. O tempo começa a ser o de não condescender com o pensamento que está no âmago dessa violência.

Intriga-me constatar que os ténues sinais de mudança limitam-se a identificar a fonte do ódio no Islão ou em parte dele. Se apenas conseguimos vislumbrar a árvore e não a floresta é porque essa atitude dá muito jeito ao pensamento e práticas políticas das esquerdas, independentemente de serem moderadas ou radicais. Basta afastarmo-nos das sociedades ocidentais para se perceber que, onde quer que tal família de ideologias se afirme, o seu traço comum assenta na aversão ou mesmo no ódio às sociedades ocidentais. Quando não lhes é possível identificar razões históricas para a sua postura, como a ‘culpa’ pela escravatura ou pelo ‘colonialismo’, descobrem no Ocidente fontes nefastas ‘alternativas’, como o ‘imperialismo’, o ‘capitalismo’, o racismo ou o militarismo.

No século XXI, a aceitação dessas ‘acusações’ raia a estultícia. Como se não soubéssemos da irmandade habitual entre a violência coletiva assassina e o marxismo-leninismo-maoísmo. Como se não soubéssemos que do ‘colonialismo’ europeu também e sobretudo gerou a maior transformação civilizacional de sempre das antigas sociedades colonizadas. Como se não soubéssemos que uma parte das antigas sociedades colonizadas vive, nos dias que correm, fenómenos de regressão civilizacional em alguns dos seus núcleos fundamentais por responsabilidades próprias, atestadas por manifestações impensáveis há umas poucas décadas (quotidianos marcados por mortes gratuitas; criminalidade galopante; linchamentos populares; desrespeito pela propriedade; xenofobia endémica). Como se não soubéssemos que foram as sociedades ocidentais as únicas onde existiu uma cruzada moral genuína contra a escravatura e, depois, contra o racismo. Como se não soubéssemos que é nas sociedades ocidentais que, na atualidade, as mulheres e as mais variadas minorias são respeitadas e, se necessário, protegidas, bem mais do que alguma vez no passado e muitíssimo mais comparativamente a diversas sociedades não-ocidentais.

Parte importante da ultrapassagem de fenómenos que atentam contra a dignidade humana teve o contributo das esquerdas intelectuais e políticas do Ocidente. No entanto, não é irrelevante sublinhar que tais transformações históricas também e acima de tudo se inscrevem na tradição milenar de matriz filosófica e cristã em que assentam os valores europeus e, depois, ocidentais. Passaram cerca de dois milénios sem que os ocidentais tenham renegado tais heranças. Nesta perspetiva, as ideologias das esquerdas pouco mais serão do que detalhes carregados de ambiguidades no decurso do último século. Basta pensar nos milhões e milhões de cadáveres por responsabilidades diretas e indiretas das utopias das esquerdas vergonhosamente relegados para o limbo da dignidade humana.

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É tempo de se questionar se o pensamento das esquerdas ocidentais, hoje hegemónico, não está ele mesmo imbuído de um fortíssimo espírito anti-ocidental, o mesmo que alimenta as demais esquerdas ou ideologias aparentadas dominantes no resto do mundo.

Mas os dilemas europeus e ocidentais estão também na incapacidade humana de cada um mudar ‘por dentro’. Bem mais fácil e cómodo é exigir que os outros mudem. Os islâmicos dão muito jeito. Porém, não chega. Para os europeus, tal exigência é penosa por colocar em causa a hegemonia das ideologias das esquerdas que deram sentido à vida de segmentos significativas das suas populações. Resta saber se tiros, bombas e mortes os arrancarão da letargia em que mergulharam.

Como não acontece com outras sociedades em dimensão equiparável, o facto é que as sociedades ocidentais têm sido exímias em exorcizar os fenómenos violentos que elas mesmas geraram, orientando-se por um sentido genuíno de auto-responsabilização. No mundo não-ocidental, a regra é bem mais a da vitimização coletiva, tornada problemática por impedir a refundação de ordens morais sustentáveis no tempo e cultural, política, social e economicamente férteis.

Não entender que no âmago do sentido civilizacional dos ocidentais reside, há séculos e séculos, a sua luta interna contra os seus próprios males tem sido prejudicial para os próprios, mas sobretudo para as sociedades não-ocidentais se contabilizássemos o mal em número de cadáveres. Quem lida com pessoas ou sociedades que se auto-responsabilizam por excesso tende para excessos de auto-desresponsabilização. Daí que muitas das elites dispersas pelo mundo usem e abusem do álibi dos males causados pelos europeus ou pelos ocidentais com graves prejuízos para as suas sociedades. Nada como pensar e governar mal, nada como semear a violência interna, para depois jogar as culpas para o passado histórico ou para os de fora, os do Ocidente, posto que os últimos amparam este arriscado jogo. Porém, quando as culpas são jogadas para fora, as fontes do sofrimento, da miséria ou da violência permanecem incólumes no interior dessas sociedades. Depois, será sempre bem mais fácil legitimar a violência antiocidental quando passa das palavras aos atos.

No Ocidente, vai sendo também tempo de se perceber que as fontes de violência não estão mais no direito de expressão das minorias. Residem muito mais no direito e na dignidade de expressão das minorias que sobrevivem dentro das minorias e que não alinham pelo politicamente correto. Sejam minorias raciais, religiosas, sexuais ou étnicas. Se a sua dignidade fosse respeitada e valorizada, as minorias no seu todo beneficiariam da maior facilidade de integração nas sociedades de acolhimento, bem como as suas sociedades de origem não-europeias seriam mais propensas a transformações mais identificadas com a civilização ocidental. Por viverem de estereótipos quase grosseiros das minorias, esta incapacidade dos ocidentais constitui uma das fontes de que se alimenta o extremismo islâmico e demais comportamentos e atitudes que atentam contra o modelo de vida ocidental.

Não é difícil ainda supor que fora do Ocidente – dos países árabes aos países africanos ou asiáticos – existem minorias pró-ocidentais ou, pelo menos, minorias que se identificam sem ambiguidades com a civilização ocidental. Porém, dificilmente ousam exprimir-se por temerem o poder das elites dos seus países, mas não menos por saberem que, em particular nas sociedades das antigas potências coloniais europeias, não encontrarão quem as valorize ou, se necessário, as apoie. Antes encontraram a barreira politicamente correta da humilhação liderada por uma casta ocidental bem-pensante, a elite intelectual e académica dominante. Há décadas que estes se encarregam de desincentivar, amesquinhar ou destruir mesmo os sentimentos pró-ocidentais que subsistem por todo o mundo. Depois, para glorificação das esquerdas que vivem no interior das sociedades ocidentais, é fácil alegar que o mundo odeia o Ocidente.

Em Portugal, por exemplo, o pecado de não ser genuinamente europeu (na cor da pele e demais atributos primários) e ousar manifestar sentimentos pró-ocidentais pode ser cobrado com mimos do calibre do ‘pretinho salazarista’. Se isto não é estupidez não sei o que seja tal coisa. E a dita anda à solta. Alguns casos-tipo das fontes dos males ocidentais. Na abordagem da escravatura, quantos se preocuparam em refletir sobre o tema contabilizando os milhões de escravos africanos negros levados para os países árabes (entre outros países asiáticos) ao longo de séculos, espaços de onde provém a violência do extremismo islâmico, e o que aconteceu a esses milhões de escravos. Até hoje alguém deu por complexos de culpa endógenos associados ao fenómeno naquelas civilizações? Na abordagem do racismo, a quantos é explicado que o problema é hoje muitíssimo mais ameaçador fora do Ocidente? No caso da liberdade religiosa quase não vale a pena colocar a questão por ser por demais óbvio o tratamento violento das minorias (ou até das maiorias) cristãs em diversos países.

Não duvido que o pensamento político e social das esquerdas tenha tido um papel respeitável nas transformações sociais entretanto ocorridas, porém as esquerdas estão muito longe de terem criado a eterna reinvenção das sociedades ocidentais. Estas há muitos e muitos séculos que vivem num conflito permanente entre os seus ideais filosóficos e cristãos, que apontam para a dignidade e igualdade do género humano, e as suas realizações concretas que tornaram os ocidentais sempre insatisfeitos com aquilo que alcançam. Como explicou Dinesh de Souza, é por essa razão que os processos políticos têm sido, ao longo da história, muito mais dinâmicos no Ocidente do que em quaisquer outras civilizações.

Numa tendência intrínseca ao Ocidente, o facto é que as esquerdas acabarão por ser ultrapassadas pela história. Resta saber em que sentido. As suas virtudes do passado estão transformadas nas suas maiores fragilidades precisamente porque o lugar subjetivo da Europa e do Ocidente não os colocam hoje numa posição de força em relação às demais sociedades, antes numa posição de vulnerabilidade ou mesmo de fraqueza alimentadas pelas utopias dessas mesmas esquerdas.

Em 1918-1919, Max Weber explicou:

“É uma verdade plena e um facto básico de toda a história (…) que com frequência ou, melhor, em geral o resultado final da ação política se encontra numa relação absolutamente inadequada e, muitas vezes, até paradoxal com o seu sentido originário” (Weber, 2005 «A política como vocação» in Três tipos de poder e outros escritos, Lisboa, Tribuna da História, p. 103).

O pensamento das esquerdas ocidentais transformou-se, no último século, em consistentemente anti-ocidental e chegou o tempo das diversas utopias ideológicas que comungam desse ideal fazerem desaguar as suas violências (também) nas sociedades ocidentais. Para já por via do radicalismo islâmico. Mas o pano de fundo é bem mais vasto. Olhe-se para Paris. Transformada na nova mira da incurável violência progressista, a última paradoxal e vigorosamente presente no pensamento de muitos parisienses. O extremismo islâmico dispara e explode bombas também porque na Europa Ocidental não falta quem pense por ele.