Há em Portugal duas categorias profissionais cujos membros são genericamente designados pelo pronome pessoal “eles”: os meteorologistas e os políticos. “Eles” sugere separação e distância. E é assim, de facto. Mas convém distinguir as duas distâncias. No caso dos meteorologistas, é a distância por relação ao saber, e a um saber que entre todos é mágico, o do tempo: “Eles dizem que vai chover amanhã”, e quem somos nós para duvidar? No caso dos políticos é diferente. A distância implica aqui uma protecção contra a contaminação por um qualquer miasma fétido, invariavelmente implicando alguma desonestidade: “Eles querem é tratar da sua vidinha”.

A associação secreta vulgarmente conhecida por Assembleia da República e a Câmara Municipal de Lisboa decidiram quase em simultâneo contribuir generosamente para confortar os cidadãos nessa sua tradicional e pouco simpática visão da classe política. Os deputados votaram quase à socapa (expressão repetida várias vezes em inúmeros artigos de opinião dedicados ao tema) a tal nova lei do financiamento dos partidos. E votaram, segundo fomos informados, praticamente sem saberem os detalhes do que votavam, produzindo posteriormente, na televisão e noutros meios de comunicação, a prova cabal dessa ignorância. Mandaram-nos votar e eles, que muito pensam pela própria cabeça, votaram. Mas sejamos justos. Então a austeridade não acabou? Não se “virou a página”? E os partidos não merecem a doce isenção de IVA e outros benefícios assim? O fim da austeridade foi interiorizado pelo próprio PSD. Ficava mal e era pouco digno continuar a fingir que somos pobrezinhos.

Por sua vez, como nos explicou aqui no Observador uma excelente reportagem de Rui Pedro Antunes, na Câmara de Lisboa as avenças em gabinetes do PS aumentaram até 80%. Catarina Gamboa, mulher do actual secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Pedro Nuno Santos, que na sua juventude almejava pôr as pernas dos banqueiros alemães a tremer, teve um aumento de mais de dois mil euros no actual mandato, e António Mega Peixoto, filho do blogger que assinava como “Miguel Abrantes” na socrática “Câmara Corporativa”, e que, segundo se diz, o próprio Sócrates pagava do seu saco sem fundo, foi também ele contemplado com um generoso incentivo pecuniário. E são apenas dois casos entre muitos. Mais uma prova tangível que a austeridade acabou e que os contribuintes, em sinal de reconhecimento pelos prodígios dos nossos políticos, estão dispostos a recompensar o desvelo com que nos tratam.

Duvidar desta visão das coisas tem um nome feio: “populismo”. As dúvidas de Marcelo, que vetou o diploma aprovado pela Assembleia da República, são “populistas”. Tudo o que ponha em causa a legitimidade do diploma é “populista”. Ou pior ainda. Para o comunista Rui Sá, por exemplo, há aqui ódio. No caso, “ódio à Festa do Avante” (que raio de ideia!). Os comunistas (e os bloquistas) não são menos “eles” do que os outros. A verdade é que, como aqui Rui Ramos escreveu na passada terça-feira, “os partidos não precisam de nós”. De facto, são entidades estanques que nem ambição têm de serem respeitados. Estão onde estão e, pela própria lógica do seu modo de existir, não se põem no lugar do outro, do cidadão comum e inerme.

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Valha a verdade que não fazem, nisto como noutras coisas, senão mimar uma possibilidade de comportamento social assaz vulgar. Dou um exemplo pessoal, não por ser particularmente interessante, que não é, mas porque é ilustrativo do que quero dizer. De há vários meses para cá, os meus vizinhos de cima, ilustres filhos de uma célebre nação das Caraíbas, adquiriram uma cadela (creio que Serra da Estrela) a quem puseram o significativo nome de “Lola” (em momentos mais íntimos “Lolita”). Por uma razão ou outra, tomaram a decisão de nunca a passear, restingindo os seus movimentos ao espaço de um apartamento. O que significa que eu e a minha mulher, graças às caninas patinhas ágeis no soalho, fomos introduzidos à imerecida experiência de termos um cão em casa sem o termos. Não falo sequer das corridas desvairadas pelo andar de cima que proíbem a paz da leitura e da música. Falo da infelizmente contagiante energia que ela persiste em nos transmitir, já que dorme em cima do nosso quarto, acordando-nos à meia-noite, às duas ou às quatro da manhã com saltos que manifestam a sua esplêndida alegria de existir, uma alegria que desgraçadamente não se pode exprimir, como devia, no jardim da Rotunda da Boavista, mesmo em frente.

Naturalmente, exorbitando de delicadeza, fiz a viagem ao andar de cima para comunicar a ligeira incompatibilidade entre o nosso repouso e as agitadas insónias da Lolita em questão. Sem sucesso, confesso. Da segunda vez, até com direito a uma colossal berraria em nome da sagrada inviolabilidade do lar. Meti o rabo entre as pernas e, passado meses de fuga nocturna pelos vários compartimentos da casa para escaparmos à agitação animal, decidimos recorrer a um intermediário autorizado. O intermediário autorizado cumpriu generosa e insistentemente a sua função, mas nada no essencial mudou. Como os partidos, os proprietários da amorável Lolita não se põem no lugar do outro. O andar de cima é um compartimento estanque que obedece a uma jurisdição própria que inclui a possibilidade de lixar a vida a quem está em baixo. E os partidos, por sua vez, cada mais se assemelham a vizinhos do andar de cima. “Não precisam de nós”, justamente. Existem por nós, mas não existem para nós. Existem para si mesmos.

Há, no entanto, uma diferença óbvia entre os dois casos. No caso dos partidos, há uma, ainda que ténue, possibilidade de os mudar, de os trazer, um pouco que seja, para junto de nós, contrariando a sua formidável inércia. De fazer com que o “eles” dos políticos perca algumas das suas conotações mais desagradáveis. É, de resto, a única solução aceitável e não se pode desistir. No caso dos vizinhos, a desistência, pelo contrário, é legítima e, em certos casos, inevitável. Tanto mais que a lei concede um grande espaço ao exercício da selvajaria. Em contrapartida, há uma solução sempre possível: mudar de vizinhos. Não se deve nunca exagerar a natureza dos nossos males.