Na última sessão de Setembro a Assembleia Municipal de Lisboa discutiu, por iniciativa do PAN, um Voto de Saudação para comemorar os “40 anos da descriminalização da homossexualidade em Portugal”. Uma ideia meritória e um bom pretexto para dar ordem ao assunto, já que as coisas não aconteceram exactamente assim. A homossexualidade já não era um crime expresso na lei portuguesa há muito mais tempo. Só que o Estado Novo aproveitava a vergonha dos costumes e perseguia os homossexuais usando a figura do “atentado ao pudor”. E não perseguia todos por igual, nem sequer indiscriminadamente; perseguia os seus opositores. Usando a PIDE, o Estado Novo exercia uma política de perseguição selectiva e discricionária dos homossexuais. Tal como o PCP.

Júlio Fogaça foi um militante e destacado dirigente comunista que, durante o V Congresso do PCP, em 1957, defendeu uma linha de transição pacífica para a democracia. A facção dura do partido chamou a esta posição um “desvio de direita” e os chefes desta facção aproveitaram o pretexto da homossexualidade para o perseguir. Expulsaram-no sub-repticiamente em 1961, depois do julgamento em que foi vexado em público pelo Estado Novo, no qual a PIDE o atormentou com afirmações e perguntas humilhantes sobre a sua vida pessoal. O PCP expulsou Júlio Fogaça em segredo, mas primeiro armou uma farsa publicando nos seus jornais declarações ambíguas sobre um processo interno. Usou a exposição pública a que a PIDE o sujeitou, criticou a “conduta” de Fogaça, e condenou a sexualidade dele sob o falso pretexto de “não respeitar as regras da clandestinidade”. Em bom rigor, uma manobra simples e fria da direcção comunista para se ver livre de um adversário político.

Esta história mostra bem como era a moral política do PCP. No mesmo período, as queixas de assédio sexual deram origem a penas leves; e a homossexualidade foi punida com penas pesadas e serviu, como se vê neste caso, para encobrir uma expulsão.

Bem pode vir, tendo agora directoras semi-instruídas a mandar no Museu do Aljube, tentar contar uma história diferente. Rita Rato não foi escolhida pelos seus méritos, nem pelo seu passado anti-fascista, nem pela vastidão dos seus conhecimentos históricos. Ela foi subida a directora pelo PS, logo que António Costa negociou a Geringonça; e o lugar dela foi entregue ao PCP como forma de pagamento de favores políticos. Rita Rato ostentou na praça o orgulho cândido em não saber o que era um gulag. Entrega-se agora com zelo à montagem de exposições sobre a maneira como o Estado Novo perseguiu os homossexuais. O interesse destas exposições é indiscutível. Só que o partido dela fez a mesma coisa, os mesmos métodos pelos mesmos motivos.

É bom comemorar estas datas para se falar da maneira como os regimes se comportaram e os partidos também. Designadamente, o PCP, que há pouco mais de um ano comemorava o seu centenário com uma linguagem cénica totalitária. Já bem depois do 25 de Abril, Cunhal desabafava que a homossexualidade era “muito triste”. Disse isto a Carlos Cruz, em 1991, na televisão pública (não havia outra). Curiosamente, o PCP nem sequer esconde muito a sua natureza, basta olhar para ele e querer ver. É bom saudar um regime em que a homossexualidade não é perseguida, directa ou indirectamente, sem maneiras enviesadas de criminalizar o que a lei não menciona. E é bom estudar a história das políticas e dos costumes para perceber que entre o Estado Novo, a PIDE, e o PCP, há muito mais em comum do que a esquerda quer plantar na nossa imaginação.

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