“Absurdo”, “desumano”, “ridículo” – foram alguns dos epítetos com que vários comentadores qualificaram o convite do Cardeal Patriarca de Lisboa à abstinência sexual das pessoas divorciadas em nova união que queiram aceder ao sacramento da Eucaristia.

Há que reconhecer a ignorância e a superficialidade que subjazem a esse tipo de comentários.

Ignorância, desde logo porque se deu a entender que esse convite era uma inovação do Patriarca de Lisboa, quando este se limitou a seguir não só uma orientação de São João Paulo II formulada há muito tempo, mas sobretudo, com notória fidelidade, as recentes orientações dos bispos da região de Buenos Aires, que o Papa Francisco afirmou serem a interpretação correta das suas próprias orientações expostas na exortação apostólica Amoris laetitia.

Superficialidade (houve quem, a propósito dissesse que estava habituado a esta ligeireza apenas nos comentários de futebol) porque se retirou uma frase de todo o contexto que a explica (muitos nem se terão dado ao trabalho de ler o texto completo da nota sobre receção do capítulo VIII dessa exortação apostólica, de onde a frase foi retirada).

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Associar a questão a uma suposta desvalorização da sexualidade conjugal pela Igreja (invocando até seitas heréticas de tempos muito recuados) é desvirtuar completamente o que está em causa. Mais do que ninguém, São João Paulo II, com as suas catequeses sobre a teologia do corpo, enalteceu a sexualidade conjugal como imagem da própria comunhão divina, o que bastará para afastar em absoluto tal suposta desvalorização (maior valorização do que esta, não consigo vislumbrar).

A abstinência sexual de pessoas divorciadas em nova união só se compreende à luz da indissolubilidade de um matrimónio válido anterior. É a coerência (talvez heróica) com uma promessa de fidelidade incondicional (isto é, de ser fiel, mesmo para além da infidelidade do outro) que foi formulada diante de Deus e da Igreja e que perdura mesmo para além do fracasso. É levar a sério as frases de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimónio (Não separe o homem aqueles que Deus uniu; … se o homem se divorcia da sua mulher e casa com outra, comete adultério — Mt 19, 3-9).

É essa mesma coerência com uma promessa anterior de fidelidade incondicional que também leva muitos (e muitas) a renunciar a uma nova união mesmo quando a oportunidade surge (o que também pode ser igualmente heróico), e mesmo que nenhuma culpa lhes possa ser assacada no fracasso do seu casamento.

É uma proposta certamente difícil e, ainda mais certamente, contrária à cultura hoje dominante.

Mas a proposta de Jesus no Evangelho não era mais fácil no tempo em que foi formulada e estava, tanto como está hoje, em perfeito contraste com a mentalidade então dominante (a ponto de os discípulos dizerem que se assim é, será mais conveniente que o homem não se case — Mt 19, 12)

A Igreja não pode apagar do Evangelho as frases que hoje incomodam, parecem mais exigentes ou contrastam em absoluto com a mentalidade corrente, Trairia a sua missão. E, em particular no que se refere à indissolubilidade do casamento, em nada beneficiaria os homens e mulheres de hoje, a sociedade contemporânea, se o fizesse. A indissolubilidade do casamento serve o bem das pessoas e da sociedade. Embora se pretenda não o reconhecer, a generalização do divórcio, em que os filhos de pais separados se tornam a regra, não é um bem para estes (veja-se, por exemplo, o livro de Elizabeth Marquardt, Between two worlds – The inner lifes of children of divorce, Three Rivers Press, 2005). É o casamento indissolúvel que estrutura em bases sólidas a sociedade. Afirmou o Papa Francisco no seu discurso deste ano ao corpo diplomático junto do Vaticano: «Ora não se mantém de pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis; mas é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera e simples, um caráter sacro e inviolável e uma função natural na ordem social

Sem esquecer as feridas de quem conheceu o fracasso do casamento, e a necessidade de acompanhar e integrar essas pessoas, o objetivo principal do Papa Francisco é aquilo a que ele chama a “pastoral do vínculo”, isto é, prevenir e evitar esses fracassos, através da boa preparação para o casamento e da ajuda aos casais que atravessam crises de relacionamento que possam ser superadas. Diz ele na Amoris laetitia (307): «A compreensão pelas situações excecionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos fracassos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as ruturas.»