Se o século XX foi o século da conquista do ar e do espaço, o século XXI deveria questionar-se, não apenas acerca das nanotecnologias, mas, também, sobre as nanocronologias, isto é, sobre o tempo infinitesimal, sobre a conquista do infinitamente pequeno do tempo.

Paul Virilio

No passado dia 10 de setembro, com 86 anos, faleceu o filósofo, arquiteto e urbanista Paul Virilio, como ele diria, numa verdadeira corrida contra o tempo. Presto-lhe aqui uma muito sentida e singela homenagem. A partir de uma recolha de textos escritos e entrevistas deixo registados alguns dos seus enunciados filosóficos mais expressivos e conhecidos.

Na base das suas reflexões está a triangulação entre velocidade, tecnologia e política. A dromologia é, segundo Paul Virilio, uma área de estudo interdisciplinar acerca da velocidade e do modo como ela muda a perceção do tempo e do espaço e, portanto, a natureza dos fenómenos políticos, sociais, económicos e culturais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Eis alguns dos seus enunciados filosóficos mais expressivos, quase todos reportados aos “tempos que o tempo tem”, desde o tempo lento da arte e da cultura até ao tempo infinitamente pequeno do ciberespaço, essa colónia virtual para onde muitos de nós estão a emigrar.

A era da cronopolítica

  • Vivemos na era da cronopolítica, em pleno culto da velocidade-luz, numa verdadeira corrida contra o tempo.
  • Na era da cronopolítica, a velocidade das transações excede o tempo da política, tornando o estado-nação uma figura cada vez mais decorativa.
  • Na era da cronopolítica, a velocidade das transações assegura a hegemonia da especulação sobre as necessidades reais da economia.
  • A velocidade é uma embriaguez, vamos chocar contra o muro do tempo; onde fica o mundo sensível e a sensibilidade?
  • Na era da cronopolítica, a velocidade das transações gera uma espécie de buraco negro da extra-territorialidade.

Os acidentes do conhecimento

  • O acidente dos conhecimentos é o pecado original.
  • Na idolatria do progresso, a velocidade é a face escondida da riqueza e do poder.
  • A propaganda do progresso oculta os acidentes do conhecimento, a gravidade do tempo acidental.
  • Uma investigação que não investiga a sua própria tragédia não é uma investigação.
  • A sincronização dos sistemas automáticos e a velocidade de propagação dos seus efeitos colocam-nos à beira do desastre integral.

O tempo instantâneo e infinitamente pequeno

  • O infinitamente pequeno, o tempo instantâneo, o tempo infra, o tempo do reflexo e não da reflexão.
  • A aceleração do real e da realidade, um tempo instantâneo, um tempo inabitável.
  • A instantaneidade, o tempo infra, o tempo da irresponsabilidade.
  • O tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina, o poder é delegado nas máquinas do tempo.

O fim da geografia

  • Hoje em dia o poder não é mais geopolítico, religado ao solo, ele é aeropolítico, as ondas, os aviões, os satélites traçam o porvir.
  • A História transferiu-se da Terra para o Céu, com toda a dimensão mística de adoração do cosmos, do grande vazio sideral, das ondas que se propagam.
  • É o fim da geografia, emergem os não-lugares onde a identidade dá lugar à rastreabilidade; eu não posso ser sem ter um lugar, torno-me um estranho.
  • A Terra é muito pequena para a velocidade, a economia e a ecologia irão ficar face a face e fundir-se.
  • A aceleração do tempo torna o mundo plano.

O dilema do prisioneiro

  • Vivemos o dilema do prisioneiro, presos nas teias do imediatismo e do mediatismo.
  • A desconstrução da cultura geral devido à alucinação, à loucura de informação.
  • A aceleração do tempo impede-me de ver a diferença entre verdadeiro e falso.
  • A aceleração do tempo real põe em causa a perceção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos.

A colónia virtual

  • O ciberespaço, um sexto continente, uma colónia virtual para escapar ao mundo plano.
  • A sincronização das emoções na colónia virtual ou a possibilidade de um comunismo dos afetos, uma nova tirania dos sentimentos.
  • O sexto continente, vazio, veloz, sem duração, cruel, inumano.
  • A minha língua estrangeira é a velocidade.

A economia just in time dos sistemas automáticos

  • Se o tempo é dinheiro, a velocidade é poder, a financeirização da economia é uma questão de alta velocidade.
  • A velocidade foi a revolução dos transportes, hoje é a revolução das transmissões instantâneas.
  • Os mini-crashes serão cada mais frequentes devido aos automatismos das máquinas.
  • A velocidade transforma o estado-nação numa variável endógena da globalização.

A arte e a cultura, o tempo lento

  • A globalização gera um sentimento de claustrofobia da humanidade, a Terra é muito pequena para a revolução das telecomunicações, nós também vivemos de distâncias, vivemos, por isso, um sentimento de encarceramento.
  • A arte e a cultura introduzem distância e duração, faça da sua vida uma obra de arte.
  • Não há globalização sem virtualização, o teatro e a dança são as únicas duas linhas de resistência à virtualização, as duas artes do corpo por excelência.
  • A abolição das distâncias geográficas significa o envelhecimento do mundo, o esgotamento de um mundo finito, que melancolia!

A finitude da vida, o risco de uma ciência sem consciência

  • A finitude da vida, a bomba atómica, a bomba informática, a bomba genética, a bomba climática, os acidentes sistémicos que nos esperam.
  • Há um momento em que a arrogância da ciência se torna insuportável, pois não tem em devida conta os seus efeitos negativos: a pegada ecológica, a pegada informática, a pegada nuclear, a pegada genética, a pegada climática.
  • Um dia a ciência ainda vai ser obrigada a engolir a sua arrogância tecnocientífica e a viver de acordo com a grandeza da pobreza.

Tudo num instante, o tempo dos incidentes e acidentes

  • Em vez de acontecimentos, passamos a viver de incidentes e acidentes.
  • Numa democracia virtual de reflexos condicionados, vemos tudo através de um écran que entra em concorrência com a escrita, a imagem em vez da linguagem.
  • A aceleração da realidade impede-nos de ver a realidade, o tempo humano é esmagado, não vemos nada.
  • Já não vivemos o presente, vivemos o instante de uma realidade acelerada, tudo num instante.
  • O instantâneo e o imediato, eis os conceitos do tempo atual e dos nossos modos de vida.
  • Os transportes e as transmissões fizeram encolher o mundo, vivemos uma espécie de encarceramento psicológico, parece que estamos constantemente ser observados.

Nota Final

Não há qualquer dúvida sobre a extraordinária atualidade do pensamento de Paul Virilio, não obstante algumas críticas sobre o pendor por vezes alarmista de algumas das suas reflexões, em especial quando escreve sobre os desastres do conhecimento (a sua ideia de uma Universidade do Desastre). Talvez não seja, também, o fim da geografia, como não foi o fim da história, mas para tal é fundamental que dediquemos um cuidado especial aos “tempos que o tempo tem”, desde o tempo lento da arte e da cultura até ao tempo infinitesimal dos instantes do quotidiano. Com efeito, segundo a sua dromologia, para cada velocidade uma realidade. Em cada velocidade e em cada aceleração uma linha vermelha e o risco iminente de violação dos limites do tempo humano. No final, cada um de nós é, também, um produto de múltiplas velocidades, cada uma delas abrindo para uma realidade diferente da nossa vida. Não é mau, se formos bem aconselhados.

Universidade do Algarve