A evidência científica permite-nos antecipar o número de casos de COVID-19

O número relatado de doentes infectados pelo novo coronavírus em Portugal é manifestamente inferior à proporção real de doentes com sintomas de COVID-19 que existe no país.

Esta situação deve-se ao inerente desfasamento entre resultados laboratoriais e sintomas dos doentes. Estimam-se 5 a 8 dias[1],[2] entre os primeiros sintomas (como tosse seca e febre) e os sintomas mais graves (como dificuldade respiratória). Serão estes últimos que levarão à avaliação hospitalar e confirmação laboratorial do diagnóstico – com subsequente contabilização como “caso confirmado”. Assim, dados[3] do início da pandemia apontam para que, no dia em que são confirmados 300 casos cumulativos, possamos estar já perante 2.000 novos casos diários (que, nesse dia, iniciarão sintomas).

À inevitabilidade acima-nomeada, acrescem limitações nacionais. Em Portugal, os fluxogramas centralizados de validação e teste de casos têm sido: estreitos (sobrevalorizando a importação de casos); morosos na sua actualização (com um caso nacional confirmado a 9 de Março, após estadia em Espanha – país com 589 casos confirmados nesse dia – e sendo apenas a 12 de Março – Espanha contando 2.140 casos – incluído o país vizinho nos critérios de validação); e limitados em robustez, entrando em falência a Linha de Apoio ao Médico (cujo papel prévio foi, entretanto e correctamente, descontinuado[4]) pela extensa (tentativa de) utilização pelos clínicos.

Supondo inviabilizada a realização de teste a 100 casos (33,33%): quando se comunicam 300 casos estaremos, na realidade, perante 400 casos. Com base nos números italianos, ajustados a 10 dias (considerando 5 dias de incubação média e 5 dias até sintomatologia grave): estes 400 casos hoje corresponderão, de facto, a 5883 casos. Explanando por outro prisma: os infectados pelo vírus a 16 de Março, apenas cerca de 26 de Março serão diagnosticados (se testados).

Os casos de COVID-19 sobrecarregam o sistema de Saúde

Subestimando que no “dia dos 300 casos” tivéssemos, na realidade, 5.000 casos de COVID-19 em Portugal, as demais considerações consistem de matemática simples. Em Itália reportaram-se 12%[5] dos doentes com teste positivo a necessitar de internamento em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI). No explanado cenário português, corresponderá, então, o “dia dos 300 casos” à necessidade de internamento futuro em UCI de 600 doentes (i.e., 12% de 5.000).

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Tem-se estimado que terá Portugal entre 500 e 600[6] camas de UCI – considerando a capacidade total e não ao número de camas livres. Note-se que, no dia-a-dia dos hospitais nacionais, as vagas de UCI são habitualmente escassas e reservadas para quadros clínicos muito graves – outros que não por COVID-19 (e cuja presente situação epidemiológica não leva a crer que ocorram em muito menor frequência). Considerando a duração média de internamento médio de 8 dias[7] em UCI para COVID-19 e os referidos 600 casos, compreender-se-á que a sua acomodação em UCI se anteveja, desde já, como um desafio.

 A letalidade da COVID-19 pode ultrapassar os 20%

Estima-se que a doença causada pelo SARS-CoV-2 tenha uma letalidade entre 2,5 a 30 vezes[8] a da gripe sazonal (i.e., 0,25% a 3% dos infectados). Esta variabilidade é, entre outros, condicionada pela capacidade dos sistemas de saúde de abordar e gerir os casos mais graves – mantendo-se que, de facto e longe de alarmismos, cerca de 81% dos casos sejam ligeiros a moderados e apresentem um curso relativamente benigno. A problemática reside na severidade da doença dos restantes 19%.

Tomando como exemplo o que ocorre no assoberbado sistema de saúde italiano (cuja capacidade de camas em UCI é, destaco, 3 vezes superior à portuguesa) e replicando métodos publicados[9] (de forma conservadora, com referência à letalidade em Itália a 7 de Março e 7 dias de ajuste aos casos relatados): em sistemas de saúde em falência a letalidade da COVID-19 poderá ultrapassar os 20%.

Quaisquer medidas aplicadas apenas terão impacto após 10 dias

Já incorporando o impacto das medidas presentemente aplicadas em Portugal, um modelo exponencial[10] prevê que poderemos chegar ao final de Março com mais de 16.000 casos. Este padrão exponencial de aumento da COVID-19 manter-se-á, como é cientificamente expectável, enquanto persistam indivíduos susceptíveis à doença e circunstâncias que não o limitem. As (tardias, porém correctas) medidas de restrição aplicadas poderão limitar parcialmente os casos nacionais. No entanto, importa destacar que, pelas características da COVID-19, as medidas adoptadas apenas poderão impactar a situação epidemiológica 10 dias após a sua implementação.

Admitindo que teríamos em absoluto cessado a transmissão da doença no “dia dos 300 casos” (o que não sucedeu), encontrar-nos-íamos já em situação de extrema fragilidade e possível falência do sistema de saúde em Portugal, com marcada necessidade de estratégias de contingência na gestão dos recursos disponíveis e cujo sucesso potencial permaneceria por apurar.

Dentro em breve as flutuações diárias na percentagem de novos casos portugueses darão lugar ao aumento exponencial de casos, independentemente das medidas de contenção presentes. Vejamos o exemplo espanhol, em que, com 261 casos a 6 de Março, 10 dias depois (5 dias de incubação média e 5 dias até sintomatologia grave) os casos se cifravam em 7753, com 288 mortos.

Urge o isolamento imediato e obrigatório de todos.

A informação e o reforço de literacia em Saúde dos cidadãos portugueses são primordiais, como deverá ser o respeito pelos seus direitos. Porém, importará equacionar-se com que sentido de oportunidade e durante quanto tempo se poderá ou deverá suspender os direitos dos cidadãos, quando sejam estes incompatíveis com a sobrevivência à COVID-19 da maior proporção possível de infectados, em Portugal.

Presentemente, é possível fazê-lo de forma a que este regime de excepção tenha a menor duração possível, ainda que deva este implicar as maiores limitações possíveis no contacto e contágio entre as pessoas. Sob uma perspectiva técnico-científica, simplesmente não nos encontramos já numa situação em que, para garantir a integridade do sistema de Saúde e os cuidados de Saúde a todos, seja suficiente a redução da lotação de espaços ou a adopção de medidas de distanciamento social, de isolamento e de quarentena.

É, no imediato, da maior premência o encerramento de todos os serviços não fundamentais e a cessação absoluta da mobilidade não essencial de todos os cidadãos, por um mínimo de 14 dias.

Estou seguro de que os cidadãos portugueses compreenderão a pertinência e proporcionalidade das medidas a aplicar – fundadas, afinal, em adequados modelos matemáticos e epidemiológicos (infelizmente, muito possibilitados pela realidade já vivenciada em outros estados europeus).

São estes, afinal, os mesmo extraordinários cidadãos que, desde há vários dias, tão atenciosamente nos saúdam, aos profissionais de Saúde, com uma ovação diária, pelas 22h.

Nós, médicos, enfermeiros e todos os outros profissionais, estaremos em todas as linhas de todas as batalhas que tenhamos a travar, contra este coronavírus como contra as restantes ameaças à Saúde da nossa população. Mas precisamos que se decretem as medidas que nos permitam vencê-las.

Obrigado!

[1] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2761044

[2] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30183-5/fulltext

[3] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2762130

[4] https://observador.pt/2020/03/16/portugal-entrou-na-primeira-fase-de-mitigacao-do-coronavirus-o-que-significa-isso/

[5] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2763188

[6] https://observador.pt/especiais/a-matematica-que-explica-o-tsunami-europeu-e-portugues/

[7] https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930566-3

[8] https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/26/6/20-0320_article

[9] https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30195-X/fulltext

[10] https://observador.pt/especiais/a-matematica-que-explica-o-tsunami-europeu-e-portugues/