Em Agosto de 2022, escrevi aqui, no Observador, o texto Pénis de Senhora a pretexto do cancelamento das lésbicas de Vancouver e da proibição destas participarem na Marcha do Orgulho Gay por recusarem a ideia de um «pénis de senhora», o que as faria transfóbicas.

Esta não era, então, uma questão marginal e continua a não ser, como a demissão de hoje da primeira-ministra da Escócia veio demonstrar. Porque esta não é uma questão sobre a homossexualidade ou a minoria transgénero ou a transfobia. Esta é uma questão originada no progressismo da esquerda identitária com graves consequências políticas e de fragmentação social. Para a Escócia e para o Partido Nacional Escocês, para o movimento independentista, isto, neste momento, é claro. Afinal, Nicola Sturgeon, a primeira-ministra demissionária, considerou o veto do governo britânico ao projecto de lei escocês de auto-identidade de género, isto é, a mudança de género sujeita apenas a auto-declaração, a partir dos 16 anos, um ataque à autonomia do parlamento escocês. E depois veio o caso Adam Graham.

Adam Graham, violador, em 2016 e 2019, que durante o seu julgamento se auto-identificou/auto-declarou mulher, Isla Bryson, travestiu, e doravante foi tratado como mulher, condenado como mulher e enviado para a prisão de Cornton Vale, pasme-se, uma prisão feminina – numa ala à parte, é certo.

Isla Bryson é a larga sombra de Nicola Sturgeon, a mulher que dominou a política escocesa nos últimos 10 anos e, lamentavelmente, acabou a escorregar nas causas da esquerda identitária quando recusou ouvir a maioria das mulheres escocesas, mesmo as mulheres dentro do seu próprio partido no que ao projecto da reforma de género dizia respeito. Nicola Sturgeon resvalou de «melhor política da sua geração» para responsável pela queda na intenção de voto no Partido Nacional Escocês, e pela quebra, para valores negativos, de apoio à independência escocesa, nas mais recentes sondagens.

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A esquerda progressista identitária não está apenas a dizimar os partidos da esquerda. De tribalismo em tribalismo até à atomização está a destruir o tecido social. E está de igual forma a criar o substrato para os regimes autocráticos ditos de direita conservadora cristã – ênfase em ditos.

Se volto a trazer este assunto ao Observador é só porque, em Portugal, estamos a viver um momento de reforma política. A maioria absoluta do PS de António Costa enterrou os outros líderes da anterior geringonça e deixou os seus partidos esvaziados de eleitores. O PCP já tem um novo líder – um líder imprevisto. O Bloco de Esquerda prepara a nova liderança que, ao contrário, todos prevemos seja Mariana Mortágua. Esta deputada não tem apenas uma larga presença mediática como cronista e comentadora, foi uma inequívoca força nas comissões de inquérito à banca: precisa, duríssima, contida. Ou como disse dela Ângela Silva, granítica.

Estas esquerdas, PCP e BE, tiveram um claro campo de intervenção. O Bloco, porém, de causa fracturante em causa fracturante e depois de mastigado pelo PS perdeu a relevância: para quê votar Bloco se há toda uma ala pedronunista com apetite e competência governativa? O progressismo identitário a que o Bloco se dedicou alienou os eleitores fora dos grandes centros urbanos.

Acredito numa democracia plural. Espero que a esquerda aproveite a lição escocesa. Sobre a lição que o PSD de Montenegro está a desaproveitar, falo depois.

A autora escreve segundo a antiga ortografia