Estava a ler o Expresso Diário, ainda há pouco, quando vi a notícia – tenho dúvidas de que seja uma notícia, mas assim mesmo… «Demi Lovato voltou a usar os pronomes ela/dela: tenho-me sentido mais feminina outra vez», terá dito a cantora num podcast ao qual deu uma entrevista. Depois de, em 2021, se ter assumido como não binária e ter passado a usar os pronomes elu/delu, Demi Lovato, agora, não os substituiu, mas acrescentou os supra-citados ela/dela. E não sempre.  Nem para sempre. Fluidamente, logo, sem carácter permanente.

A minha pergunta é: o que é, então, «sentir-se feminina»? É sentir-se conforme à construção social beauvoiriana? Ou será, ainda que de forma intermitente, no caso de Lovato, identificar-se com o sexo com que nasceu? Ou será uma estética onde os constructos da feminilidade de séculos se condensam em estereótipos como o uso de maquilhagem e saltos altos? Ou terá a cantora passado a acreditar num cérebro feminino? Ou sentir-se-á obrigada à submissão, e por isso feminina, debaixo do peso das estruturas sociais do patriarcado? Não sei de que feminilidade fala Lovato. Nem sei o que é uma mulher, para Lovato, como para qualquer outra pessoa para quem ser mulher é definido pelo «conhecimento interno de ser mulher», num dado momento ou permanentemente.

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Mas sei de que mulher e de que feminilidade falam as lésbicas de Vancouver que há 4 dias atrás foram proibidas pela Vancouver Pride Society de participar na Marcha do Orgulho que, ao fim de 3 anos, no dia 31 de Julho, voltou a desfilar pela cidade. Ou seja, a mulher e a feminilidade de que falam as lésbicas que sentem atracção sexual, repito, sexual, por mulheres que nasceram com o sexo feminino e se identificam como mulheres. Mulheres cisgénero, isto é, as que se identificam a si mesmas com o sexo com que nasceram. Estas lésbicas foram proibidas de participar na Marcha do Orgulho e acusadas de transfobia. Em causa esteve o facto de não reconhecerem como mulheres, as mulheres que têm pénis, e ao qual se referem como «pénis de senhora». Estas lésbicas, que não são as do ABC LGBTQIA+ do canal Fox, foram demonizadas, canceladas e, por fim, proibidas de se manifestar na Marcha do Orgulho. O que é isto se não for uma condenação de desviacionismo? São métodos e técnicas muito velhas, mas muito actuais, usadas com extremo sucesso e sistematizadas pelo menos desde Estaline com as acusações a Troksky. Já as referi.

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Estas acções, demonização, cancelamento, proibição, a condenação por desviacionismo, são feitas a pretexto da salvaguarda da comunidade transgénero e impõem um julgamento moral e social aos «perpetradores». Porém, isso é falso. São apenas formas de cercear as liberdades. Em nada diferentes das da extrema-direita, o arqui-inimigo de estimação. Alguém se lembra da razão porque Agostinho da Silva foi para o Brasil? Não foi por ser comunista, fascista ou equilibrista. Mas porque para ensinar em Portugal nos tempos de Salazar, um professor, como qualquer funcionário público, tinha de assinar uma declaração anti-comunista. Ele não era comunista. E fascista, de certeza, também não. Era um homem que prezava a liberdade.

Eu também. E imagino que as lésbicas de Vancouver idem aspas. Não precisamos de polícia política. Não queremos polícia de costumes. Delito de opinião.

É preciso sublinhar: é um mínimo grupo de pessoas, e um mínimo grupo de entre os transgénero, da chamada esquerda progressista identitária, quem define e decide não apenas o conceito de mulher mas o que e quem é mulher, de facto. Não é a biologia. Não é a medicina. A maioria das mulheres, ao que parece, também não. As feministas radicais muito menos. As lésbicas que pugnam por direitos baseados no sexo nem pensar. É a esquerda progressista identitária, apenas e só, que sabe o que é uma mulher. Isto ditatorial.

O Estado tem sido cooperante. Ou melhor, os Estados. Lenta e progressivamente. Mudaram-se pronomes. Estão a abolir-se maternidades para criar centros de nascimento e assim não ofender os «homens com útero» que têm filhos nesses locais. Rasuram-se pais e mães para dar lugar a progenitores. Hoje. Mas com controlo cultural gramsciano, e de forma igualmente lenta e progressiva, leva-se a cabo um processo de dominação ideológica através da anulação da ciência, da modificação da linguagem, da acusação e punição sociais, e por fim, da educação.

Não é, portanto, surpreendente o surgimento de políticas que obliteram a moderação como resposta a este propósito de controlo cultural. Não há melhor exemplo, na União Europeia, do que a Hungria e de como deslizou para uma autocracia dita cristã e conservadora onde os direitos duramente conquistados pelas mulheres, homossexuais, e transgénero, os mais vulneráveis sempre e em qualquer sociedade, são a cada dia reduzidos. É a operatividade da Terceira Lei de Newton: à acção de um corpo sobre outro corresponde sempre a uma reacção igual e oposta que o segundo corpo exerce sobre o primeiro.

A divisão e a fragmentação que esta esquerda está a criar acabará por causar danos irreparáveis às mulheres, aos homossexuais, aos transgénero. Sobre o que fará à democracia não restam dúvidas.

Convém lembrar: a salvaguarda dos mais vulneráveis é a medida qualitativa da civilização.

A autora escreve segundo a antiga ortografia