Imaginemos que ao minuto 37 do jogo com a Alemanha Pepe tinha controlado os seus instintos e, em vez de se dirigir a Muller, se tinha juntado aos seus companheiros em mais uma tentativa de levar perigo à baliza germânica. Honestamente ninguém pode afirmar que essa diferença de comportamento tivesse sido suficiente para Portugal dar a volta ao jogo. Mas tudo podia ter sido bem diferente.

Quando ouvi a entrevista de Fernando Medina ao Observador lembrei-me logo deste episódio do nosso desastrado jogo. E lembrei-me porque o antigo secretário de Estado da Economia na governação de Sócrates, actual número dois de Costa na governação de Lisboa, defende que em 2009, já depois da falência do Lehman Brothers, teria sido indiferente, para o desencadear da crise, ter seguido a louca política de investimentos em SCUTs e de aumento da despesa pública em salários ou ter adoptado uma política mais prudente. É como se Pepe dissesse que, tivesse ele tido ou não juízo, o jogo estaria sempre perdido.

O raciocínio de Fernando Medina – e do PS que ele representa, que é o PS de António Costa – deixa-me inquieto. É o discurso da ausência de responsabilidade, é o discurso que atribuiu todos os nossos males à globalização e a um euro “mal desenhado”, é o discurso que nunca é capaz de olhar para as responsabilidades próprias, o discurso de quem é incapaz de assumir erros evidentes. Voltando à parábola futebolística, é o discurso em tudo semelhante ao que culpa o árbitro pelo penálti e pela expulsão e não reconhece o jogo miserável que a seleção protagonizou.

Ouvi duas vezes a entrevista do responsável socialista para ter a certeza que não exagerava, que estava mesmo a captar o essencial do seu pensamento – e das suas propostas, que bem podem ser as políticas do próximo governo de Portugal. Depois de o fazer fiquei sem dúvidas: ao procurar encontrar outros culpados para os nossos problemas, Fernando Medina engana-se, entra em contradição e acaba a propor políticas erradas. Vejamos porquê.

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Engana-se porque os nossos problemas não foram apenas os resultantes de “uma crise da balança de pagamentos”. Os nossos problemas não resultaram apenas de nos terem sido oferecido juros “que baixaram muito depressa”, juros que não nos deixaram controlar o endividamento. Os nossos problemas começaram precisamente quando o Estado não aproveitou a baixa dos juros para equilibrar as contas públicas, antes tirou partido da folga para aumentar os seus gastos, o número dos seus funcionários e a generosidade das suas políticas redistributivas. Os nossos problemas continuaram quando empresas e particulares começaram a endividar-se para apostarem no mercado interno e na expansão do consumo, o que também sucedeu porque o Estado, os governos, entenderam proteger as grandes empresas incumbentes, tornando mais difícil a vida às empresas inovadoras e às que apostavam nas exportações. Os nossos problemas tornaram-se ainda mais graves quando fracassaram todas as tentativas reformistas, quando se ficou sempre a meio caminho, por medo de consequências políticas, em reformas como as das leis laborais ou do sistema de pensões.

Quando, em 2009, o governo de que fazia parte Fernando Medina entrou na sua espiral despesista – o défice previsto no Orçamento era de 2,2%, acabou acima dos 10% – já tinham soado todos os alertas quer relativamente ao endividamento dos privados, quer do sector público (recordo, só a título de exemplo, o livro de Vítor Bento “Perceber a Crise para Encontrar o Caminho”, onde se notava que “nos dez anos terminados em 2007 acumulámos a maior sucessão de défices e de endividamento externos da nossa História”). Já se falava de “década perdida” em termos de crescimento económico.

Já estávamos muito mal antes de, como ele diz na entrevista, o financiamento ter acabado de repente. E só não acabou ainda mais cedo porque, no último ano do governo Sócrates, a banca comercial portuguesa sustentou artificialmente a dívida pública, secando quase por completo o financiamento à economia (João César das Neves conta bem essa história no seu livro “As 10 Questões Da Recuperação”, aqui glosado por Pedro Lomba: “não foi em 2011 que os mercados internacionais fecharam as torneiras para Portugal, isso já tinha acontecido dois anos antes”).

Mas o aspecto mais extraordinário deste argumento – “a nossa crise não foi uma crise de dívida pública, foi uma crise de balança de pagamentos” – é que se ele fosse verdadeiro, então o nosso processo de ajustamento teria sido um fantástico e inesperado sucesso: seguindo o mesmo critério dos indicadores instantâneos, Portugal já equilibrou a balança de pagamentos. Ou seja, se Fernando Medina tivesse razão, devia então reconhecer que a política seguida nos últimos anos foi um sucesso. O que, também nesta frente, não seria verdade – ou só seria utilizando os números “instantâneos” com a mesma ligeireza com que, por exemplo, Medina se refere aos valores da evolução da dívida sem nunca referir o que nessa evolução é apenas o assumir de dívida antes dissimulada.

Mas vamos ao ponto central, o mais importante: ao fazer uma leitura que assume que tudo, no essencial, esteve bem até 2011, e tudo esteve mal depois de 2011, Fernando Medina falha nos caminhos que propõe para o futuro.

Falha, primeiro, ao fazer depender qualquer futuro de uma renegociação com o exterior, com “a Europa”. É como começar a construir a casa pelo telhado – ou como preparar uma equipa para um partida decisiva começando por pedir para escolher o árbitro. Não é sério, do meu ponto de vista, falar aos portugueses sem começar por dizer o que temos de fazer. Não é sério começar por falar do que os dirigentes europeus devem fazer – aqueles que não controlamos, aqueles de que podemos sempre queixarmos, para sacudir culpas. E ainda é menos sério pressupor que as negociações que outros fizeram são sempre más, e as nossas negociações serão sempre melhores, sobretudo quando a última negociação que fizemos – fez o governo onde estava Medina – foi a do memorando inicial da troika.

Fazer depender as políticas futuras de uma imprevisibilidade – o resultado de negociações não apenas com os credores oficiais, mas também com credores privados – é criar mais dois problemas em cima dos problemas que já temos: por um lado, aumenta o risco de se tornar mais difícil recorrer aos mercados para financiar a dívida (e vamos ter de ir buscar 100 mil milhões aos mercados nos próximos anos); por outro lado, diminui a pressão para realizarmos as reformas necessárias. As dívidas não se negoceiam na praça pública, muito menos em campanhas eleitorais – negoceiam-se discretamente em função das garantias que formos capazes de dar.

Neste momento Portugal está a beneficiar de juros muito baixos, mas a situação continua volátil: se os fundos que nos emprestam dinheiro suspeitarem que um próximo governo vai querer “negociar” com eles, desaparecem no dia seguinte. Custa-me a crer que líderes responsáveis não tenham consciência disso.

Fernando Medina invoca Miguel Cadilhe para dizer que defende uma “negociação honrada” da dívida – mas, ao contrário de Cadilhe, assume que assinou o “manifesto dos 70”. O que os separa? O compromisso com as reformas. Foi isso que Cadilhe explicou na entrevista que deu ao Observador – mas é nesta frente que Medina fica apenas pelo vaguíssimo compromisso com a “consolidação orçamental” e com a “sustentabilidade da dívida pública”, uma ladaínha que já ouvimos anos a fio sem efeitos práticos.

Vamos ser francos, directos: na sua entrevista Fernando Medina diz ser impossível qualquer compromisso com os que defendem cortes na despesa pública e reformas estruturais, mas a verdade é que aquilo de que necessitamos mesmo é de um Estado menos pesado (no tempo em que ele era governante o peso do Estado chegou a ultrapassar os 50% da riqueza nacional) e de uma economia mais aberta e mais competitiva. Nenhum dos objectivos de sustentabilidade das finanças públicas é possível sem cortes, porque não temos economia que pague um Estado tão pesado e com tantos compromissos. Nenhuma possibilidade de crescimento económico é viável sem reformas que nem este governo “neoliberal” conseguiu concretizar.

Medina, como a generalidade dos socialistas, acredita que com mais educação, mais cultura e mais ciência teremos automaticamente mais crescimento económico. Não chega. Investimento em cultura, educação e ciência foi coisa que não faltou nos países da órbita soviética, e isso não impediu que o resultado fosse a miséria generalizada. Nós precisamos é de mais economia privada e produtiva, e isso não se consegue com a actual carga fiscal. E para diminuir a carga fiscal, numa fase em que o crescimento é o que é, temos de cortar na despesa pública.

Senão acabamos cheios de licenciados sem empresas onde trabalhar.

Acabamos? Se calhar já lá estamos…