Reconheço que me incomodam as pessoas que, nesta altura, se insurgem contra o consumismo. E, à boleia dessa cruzada, com um ar severo e duma forma quase repreensiva, opõem o consumo aos valores do Natal. Na verdade, elas sentem-se mais do que nós. Mais esclarecidas. Mais iluminadas. Mais afirmativas. Como se, ao contrário dessas pessoas, todos nos vendêssemos a um mundo neo-liberal e não medíssemosências (pouco natalícias) dos nossos actos. Ora, se há coisas curiosas no mundo em que vivemos, é a forma como todos parecemos resignados (às vezes, quase verdadeiramente intimidados) diante das “frases feitas”. Costuradas com “meias-verdades”.

É verdade que, durante o Natal, muitos de nós parecemos entrar num frenesi absurdo de presentes; inúmeras vezes. E é verdade que compramos presentes por comprar, sem um critério de escolha, de impulso em impulso, quase como quem cumpre um ritual. E onde o valor das prendas parece ser tanto maior quanto mais significativa é a culpabilidade que sentimos pelas nossas omissões, de um ano inteiro, em relação à pessoa a que damos essas lembranças. Na verdade, as prendas compradas dessa forma não são consumismo. Serão remorsos, com juros e bem embrulhados. E não têm muito a ver com o Espírito do Natal. São suplícios da carteira por pecados sem remissão.

Já a forma como distinguimos lembranças e presentes é o que há de mais natalício. As lembranças representam provas de vida da presença duma determinada pessoa na nossa memória. Porque ela lá existe, um presente representa um marco; um sinal. Uma forma de lhe demonstramos que não nos esquecemos dela. E que, porque estamos agradecidos por ela existir dentro de nós, lhe manifestamos o nosso reconhecimento — por aquilo que ela representa ou pelo que nos dá — com esse gesto. Uma lembrança não é consumismo. É um gesto de gratidão. E representa uma forma de dizermos a alguém — por mais que não nos seja íntimo — que, ainda assim, faz parte das pessoas que vivem no nosso “coração”. E a quem, por inerência, podemos considerar como fazendo parte das pessoas da família.

Um presente significa muito mais. Muito mais do que uma lembrança, um presente é a prova que alguém existe tão intimamente dentro de nós que conhecemos os seus desejos e lhos concretizamos. De certa forma, seremos o seu Pai Natal, sem que esse pessoa precise de escrever uma carta, que seja, em que os solicite. Um presente não é, de todo, consumismo! Acaba por nos levar a sentir um bocadinho “O Menino Jesus”, aos olhos de quem nos ama. Como se essa pessoa fosse, ao mesmo tempo, Virgem Maria e São José. E um presente fosse a estrela de Natal que se renova todos os anos. Fazendo o Pai Natal o papel dos Reis Magos.

É por isso que o consumismo e o Espírito do Natal não casam; é verdade. Mas resumir-se o Natal ao consumismo é inibirem-nos com “meias-verdades” e levarem-nos a sentirmo-nos culpados por trocarmos provas de amor sob a forma de presentes. Evidentemente que os presentes não têm de ser caríssimos. Nem têm de ser muitos. Mas têm de ter “a nossa cara”. É verdade que, muitas vezes só ”têm de ser caros” quando não têm a nossa cara. E aí, um presente não é consumismo. Mas não é um presente. Acaba por ser uma prova de que seremos desconhecidos para quem nos devia conhecer. Com um laçarote, todavia.

Se não estamos presentes na vida das pessoas a quem somos reconhecidos e se não somos os seus “presentes”, que sentido tem falar do Natal como “A Festa da Família”? São tantas as pessoas que manifestam um enorme desapego para com o Natal. São tantas aquelas que vivem “as Festas” como uma contrariedade pesarosa a que não podem fugir. São tantas aquelas que se zangam no Natal. São tantas as que cronometram todos os minutos que dividem entre as diversas partes da sua família como se o Natal fosse um protocolo “de Estado”. São tantas aquelas que converteram gestos de amor num pró forme sem significado e sem alma. São tantas aquelas que se maltratam, devagarinho, ao longo de um ano. Que, feitas as contas, o problema desta quadra não é do consumismo, que muitos apregoam. Acaba por representar uma forma enviesada de se falar da pequena “violência doméstica”, de todos os dias, com luzinhas de Natal. Que acaba por dizer, por outras palavras, que o Espírito do Natal parece ser “publicidade enganosa”. E é, se for assim; para muitos. Infelizmente! Mas que o problema não está só no consumismo, não está. E que tenhamos todos de nos “vergar” ao “Natal” de quem é contra o “consumismo” porque eles têm inveja do nosso e dos presentes e das luzes que eles nos dão, isso é que não!

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