A minha mãe e o meu pai já tinham perdido um filho e uma filha antes de eu nascer. Ambos morreram por erros humanos: no hospital, o tubo para aspiração do conteúdo tóxico do estômago do meu irmão, ingerido enquanto gatinhava,  entrou na traqueia; com a minha irmã, a parteira não valorizou o mal estar da minha mãe e chamou o médico quando já era demasiado tarde.

Nos seis anos que me separam da minha irmã mais velha existiram o Artur e a Rita. Talvez eu não tivesse nascido se eles não tivessem morrido. Não sei. Sei que fazem parte da minha vida mesmo sem os ter conhecido: as fotografias dele, muito bebé, ao colo das avós; os seus brinquedos resistentes ao tempo e à dor; os dias de aniversário dele, de nascimento dela, falados, não celebrados. Sei da tristeza que ficou na minha mãe e no meu pai – velada, contida, para não magoar mais ninguém, para não contaminar as alegrias da nossa infância E sei do perdão, esse sentimento tão difícil de manusear mas de inequívoco potencial de vida fora da mágoa, fora do ressentimento e do desejo de retribuição.

Durante os anos da exigência audaz da adolescência perguntei muitas vezes porque razão não tinham sido penalizadas as pessoas envolvidas no acidente do meu irmão – a responsável pela creche onde ingeriu o insecticida, ou a enfermeira que o atendeu no hospital. A insistência que terminava invariavelmente na frase “como é que não fizeram nada?”, acabou um dia quando a minha mãe me respondeu: eu fiz o que era preciso, eu perdoei.

Não há nada que reverta a morte. José Tolentino Mendonça disse, com grande economia, “o perdão é um acto unilateral de amor”, não exige o esquecimento. Apenas o reconhecimento da fragilidade, da falibilidade da nossa condição. E diante da morte de um filho há mais do que irreversibilidade da perda, há o abismo diante do qual a alma se precipita e que só o perdão ampara.

De manhã, uma mãe pegou nos seus filhos, pô-los no carro e levou-os à escola. Voltou para casa, trabalhou, fez a sua vida habitual até que, a meio da tarde, percebeu que deixou a filha fechada no carro. Essa mãe podia ser eu. Podíamos ser nós. Não há consolo. Não há resposta. Mas tem de haver perdão. O difícil perdão que em amor unilateral estendemos aos outros, tem de ser concedido, e é tão mais difícil fazê-lo, a nós mesmos no escuro da nossa pior hora.

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