Dois milhões e meio de estúpidos. É este o número estimado de portugueses que votarão na coligação Portugal à Frente (PàF) no próximo dia 4, e é assim que no PS os qualificam. Correia de Campos verbalizou-o – o PS vai ganhar as eleições pois “o povo não é estúpido”. E a incredulidade reinante nos bastidores socialistas perante as sondagens, conforme noticia o semanário Sol, confirma o enraizamento da tese no Largo do Rato.

São conhecidos os erros políticos do PS, assim como a sua perturbadora incapacidade para os corrigir. Mas o que está latente nestas declarações de Correia de Campos não é um erro estratégico, é algo que permanece cravado no código genético do PS: a convicção de uma superioridade moral no centro-esquerda ocupado pelos socialistas, que certifica o direito natural do PS à governação do país. É, aliás, um clássico da política portuguesa desde 1976: nas urnas, os votos valem todos o mesmo enquanto, nos jornais e nas ruas do Príncipe Real, há uns que são “melhores” e mais “inteligentes” do que outros.

É por isso que o PS pode perder as eleições, embora tal cenário, aos olhos da arrogância socialista, apenas seja plausível se o povo estupidificar. Ora, como as contingências de uma democracia são uma chatice e a estupidificação é possível, a ambição de António Costa surgiu descontraidamente noticiada no Expresso: mesmo que o PS perca, será ele a formar governo.

Só a arrogância de quem julga deter um direito natural ao poder justifica a insólita ambição de António Costa de governar mesmo que a coligação PSD/CDS vença as eleições – bloqueando a aprovação do Programa de Governo de uma maioria relativa PSD/CDS e construindo entendimentos à esquerda (de resto, absolutamente improváveis). A legalidade não constitui obstáculo, é certo. Mas a ausência de legitimidade política deve estabelecer-se como impedimento: os portugueses votam nas legislativas para eleger deputados, mas é igualmente indesmentível que o que está em causa é fundamentalmente a escolha de um primeiro-ministro. E é contrariando esse princípio que, se perder nas urnas, Costa pretende ganhar na secretaria, contornando uma eventual escolha popular que eleja Passos Coelho primeiro-ministro. O aviso fica feito: sem maioria absoluta, nenhuma coligação que exclua o PS terá condições institucionais para formar governo.

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Sejamos realistas: o cenário é, para além de inédito na democracia portuguesa, extremamente improvável. Qual a probabilidade de o PCP viabilizar um governo do PS por via de uma coligação ou de um acordo parlamentar? Zero. E qual a probabilidade de o BE obter um número de deputados suficiente e, para além disso, estar disponível para um compromisso com o PS? Quase zero. Portanto, mais do que discutir o cenário com que António Costa sonhou, importa salientar que este foi recebido no PS e na imprensa com naturalidade. Ou seja, ninguém aí encontrou uma violação da vontade eleitoral dos portugueses. E ninguém aí identificou um grave problema de legitimidade política. É isso que é revelador: independentemente da vontade dos portugueses, há mesmo quem considere que vale tudo para levar o PS ao poder – e, no fundo, substituir os portugueses na sua escolha eleitoral, numa espécie de uma apropriação da “vontade popular”.

Ora, quem tiver um pouco de memória verificará que, no interior do PS, nada há de surpreendente nesta prepotência, que nasceu com Soares e se afirmou com Sócrates, sustentada no desprezo por um certo provincianismo português – marca histórica do desdém face a Cavaco Silva, Passos Coelho e até António José Seguro, todos vistos no Largo do Rato como meros saloios – e que estabeleceu a confusão entre o PS, o Estado e o poder (um putativo «l’État c’est moi») que Sócrates tão bem personificou. Aí, reconheça-se, o PS de António Costa não é diferente do de Sócrates nem do de Soares: foram os círculos de poder das elites lisboetas no PS que o lançaram para a liderança do partido, perpetuando os tiques do passado. Mas o país, sim, está muito diferente hoje do que era em 2011, em 2005 ou nos anos dourados das décadas de 80 e 90. E, portanto, não é um acaso que tanta coisa tenha falhado na actual campanha do PS.

No dia 5 de Outubro, talvez o PS perceba, finalmente, que o seu maior problema não se encontra nos cartazes, nos discursos ou em alguma estratégia de marketing político mal arquitectada. Pelo contrário, habita na sua própria raiz identitária: é a sua arrogância (moral, social e política) que impede o PS de reconhecer e corrigir os seus erros, em vez de os apontar aos portugueses ou à comunicação social. E é essa prepotência que afasta o partido dos moderados do centro e de quem procura uma solução de estabilidade política. Ora, se o PS quiser ter futuro nestes tempos turbulentos que se avizinham, terá de mudar isso, o que não será fácil. É que Seguro tentou fazê-lo e perdeu o partido. E Costa, que não o considerou necessário, arrisca-se agora a perder as eleições – nas urnas e na secretaria.