1. Há sempre quem manifestamente fale demais ou não diga o que deve ser dito. Mas o mais frequente é não se fazerem as perguntas certas, porque são incómodas. Em Portugal tivemos vários exemplos muito recentes.
No caso da falta de médicos obstetras nas maternidades, em particular no caso de Lisboa, em vez de andarem a pedir mais do que não existe – a senhora ministra tem razão quando diz que, ao preço que o Estado paga habitualmente, não há obstetras disponíveis em Portugal –, é curioso que, mais uma vez demonstrada a necessidade de encerrar a Maternidade Alfredo da Costa – estruturalmente inadequada, vetusta e sem pessoal suficiente –, nenhum dos que andaram a fazer vigílias, prefaciar livros, protestar no Parlamento e criticar nos jornais, venha agora admitir que rodar urgências – uma péssima solução – poderia ter sido evitado se o número de Maternidades em Lisboa fosse o adequado à quantidade anual de partos na região.
Convém lembrar que houve quem, incluindo um Tribunal, tenha impedido a deslocalização de serviços de uma Maternidade, velha e mal situada, para instalações melhores e com a possibilidade de uso racional do pessoal disponível. Foi assim mesmo, com uma acção popular “apresentada por três dezenas de cidadãos, entre responsáveis da MAC, o antigo ministro da Saúde António Correia de Campos e o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, todos representados no processo pelo advogado Ricardo Sá Fernandes” como se podia ler no jornal Público de 7 de setembro de 2013. O Governo tinha 116 razões para mandar fechar a maternidade. Continuam lá todas, ainda com maior evidência, 6 anos depois. Deslocalizar a maternidade teria sido um erro? E agora, fechar os blocos de partos quando não há médicos, não é?
2. Agora, mascarando o problema, em vez de irem rodar os horários de abertura das urgências – o que seria inadequado – dizem que vão contratar médicos a preços que não querem pagar a mais ninguém. Agravam a desigualdade salarial – nada contra o princípio de pagar diferente a quem trabalha mais e melhor -, reforçam o conceito de tarefeiros e, pelos vistos, sempre podem pagar muito mais do que diziam poder pagar. Seguramente que o problema maior está nos baixos salários que o Estado paga aos mais diferenciados, mas houve erros de planificação de numerus clausus que vão demorar décadas – dezenas de anos – a resolver. O problema pode já ser maior do que apenas pagar melhor. Vai ser preciso pagar muito melhor. É evidente que o Estado seria mais eficiente se pagasse melhor aos seus profissionais permanentes do que a tarefeiros.
Em julho, já cá estamos, virão mais médicos. Não, não é verdade. São aqueles que, já sendo especialistas médicos e a aguardar contratação para os quadros do SNS onde já trabalham, serão relocalizados, se quiserem e não preferirem ir para outro lado qualquer. Era escusado que o ministério da saúde tivesse vindo anunciar, como “novos médicos”, o que já era passado. Como houve quem dissesse, foi publicidade enganosa. Mas onde está a surpresa? Não tem sido isso, publicidade enganosa, que a geringonça nos tem vendido?
3. Centeno dixit. Não há cativações na saúde. Não há? Exceto se for para a saúde dos militares e suas famílias. Li há uns dias que só com esforços do ministro da defesa, as finanças aceitaram libertar 4 milhões de euros para acudir a necessidades prementes do Hospital das Forças Armadas. Estavam cativados?
Veja-se que quando o governo, em modo propaganda errónea, diz que entregou mais 152 milhões de euros para pagar dívidas do SNS – leram bem, dívidas a fornecedores –, não está a investir, nem a reforçar orçamentos. Está a descativar o que não deu logo de início e deveria ter dado. O SNS está subfinanciado e o ritmo de crescimento da dívida hospitalar não diminuiu desde 2015, ano que as dívidas tiveram a menor taxa de crescimento. A maior redução de dívida jamais registada no SNS deu-se entre janeiro de 2012 e janeiro de 2013, sem dúvida à custa de verbas extraordinárias e dedicadas a pagar o que o governo socialista tinha deixado para pagar.
4. No que às taxas moderadoras diz respeito a tolice global tem sido completa. Salva-se o CDS. Acabam, mas não acabam. Não valiam nada, mas não há dinheiro. Quanto valem afinal? 160, 180 milhões de Euros / ano? Fazem falta para o financiamento das instituições? O PS votou a favor da eliminação das taxas moderadoras, mas não quer a dita eliminação? Não querem taxas para atos prescritos por médicos? Mas quem é a alma que vai pedir que lhe façam uma broncoscopia, uma consulta de proctologia ou uma análise ao líquido cefalo-raquidiano se não tiver havido um médico a prescrever? Somos todos tão hipocondríacos que haja uma pletora de consultas e exames “selvagens” no SNS? Tentem marcar uma consulta de especialidade ou um exame médico no SNS, sem indicação de outro médico do SNS. Nem sei se é possível, a não ser que o médico em questão já tenha decidido que quer ver esse doente. Mesmo assim, com ou sem taxa, o problema está nos meses a anos que se pode esperar e, só por isso, cobrar pela “moderação” é imoral.
Não há, repito, não há nenhuma evidência de que as taxas moderadoras em vigor tenham contribuído ou contribuam para uma diminuição de procura ou obtenção de cuidados. Até se poderia argumentar que não são dissuasoras, dado o aumento constante e sistemático de procura de atos, com as consequentes listas de espera a aumentarem. A maioria da população está isenta! Foi o governo de que fiz parte que isentou mais pessoas de taxas do que qualquer outro, incluindo os menores de idade até aos 18 anos. O memorando de entendimento com a Tróika, negociado e assinado pelo governo do Engº Sócrates que era do PS – acho que ainda é-, previa que as taxas aumentassem e as isenções diminuíssem. Cumprimos com o exigido pelos credores, aumentando algumas taxas e eliminando categorias de isentos, mas alargando o número total de pessoas com direito a isenção.
Até se poderia dizer que o maior problema das taxas é serem progressivas e penalizarem, duplamente, os que pagam impostos. Por enquanto, os valores pagos pela “moderação” são, apesar de baixos, pouco racionais. Concordo, sempre concordei, com o fim das taxas moderadoras – de quase todas elas e para quase todo o tipo de intervenções -, desde que substituídas por uma contribuição universal, como se de um seguro público se tratasse, suplementar ao IRS, com direito ao recurso generalizado a todo o tipo de prestadores, com limites pré-estabelecidos e com preços tabelados. Logo, a questão está na revisão do financiamento do SNS e não na revogação das taxas. Onde também há falhas de cuidados, para lá da incapacidade de resposta do SNS face à procura, é na falta de acesso a medicamentos, mesmo quando comparticipados, por quem, apesar de não pagar taxas moderadoras, não consegue pagar a conta da farmácia. E há muitos que desistem de ir ao médico porque sentem que não vale a pena ir tratar-se, quando nem para remédios têm dinheiro. Cá está um ponto sensível de que quase ninguém fala, a do modelo de comparticipação de medicamentos, que favorece a indústria farmacêutica e prejudica os doentes, pobres e “ricos”. Quando haverá coragem para rever o método de comparticipação de medicamentos?
5. Discutiu-se muito a pergunta rácica do próximo censo nacional. É evidente que é complexo, talvez impossível, caracterizar etnicamente uma população. Pode ser perigoso e até malevolamente ridículo. Leia-se toda a ironia no “As Benevolentes” sobre a possível origem judaica dos Bergjuden caucasianos. Reuniões, mais reuniões, peritos de Berlin…sobre se a dita população deveria ser chacinada ou deixada viver. Eram brancos caucasianos, note-se.
Mas conhecer a composição étnica da população de um país não é inútil, nem sequer é necessariamente racista. Para a saúde é fundamental conhecer quem somos e quais os determinantes que atuam sobre a vida das pessoas. O mais importante da saúde acontece muito antes de se chegar aos médicos. As desigualdades têm de ser todas caracterizadas. Não se pode dizer mal dos ciganos, nem meter sapos nas lojas, nem gozar com pretos. Mas já se pode aceitar que haja minorias sem acesso a cuidados de saúde, mesmo que seja por incúria dos próprios, por falta de educação ou pelo estado de pobreza? Mante-los pobres é aceitável, desde que não se contem anedotas racistas e nem se lhes pergunte o que são?
É essencial saber quem somos, que pessoas temos e se todos recebemos o tratamento a que temos direito. Como pode e deve ser feito é difícil e exige ponderação em termos estatísticos e de como fazer as perguntas. A mestiçagem é a regra. Exige cruzamento de dados com outras informações críticas em termos de condições de vida. Não basta saber se somos mais ou menos melanodérmicos. O INE disse já não ter tempo para preparar as perguntas e que irá fazer um trabalho específico para responder às questões dos determinantes sociais, incluindo a origem étnica, nas diferentes populações que residem em Portugal. Está certo. O que me espanta é que ninguém tenha levantado a questão mais óbvia. Sendo certo e conhecido, há muitos anos, que esta questão da origem étnica, seja lá o que isso for, é fundamental para identificar e eliminar desigualdades, tendo o último censo ocorrido há 10 anos, como tem sido hábito e é legal, não tiveram 10 anos para pensar numa solução? Não há experiências internacionais? A ideia é assim tão original?