Terça-feira, 17 de Janeiro, dia de “Perguntas à Câmara”. A meio da sessão, Rosário Farmhouse – presidente da mesa, indicada pelo PS – comunicou à Assembleia que não daria a palavra aos deputados que não tivessem enviado as perguntas antecipadamente. Perplexidade no lado direito da sala. Nunca tal havia acontecido. Faltava falar o PSD, o CDS, o Chega, o PPM e o Aliança; a mesa tinha aceitado as inscrições destes deputados; a nenhum deles seria dada a palavra. Um zelo novinho em folha destinado a “cumprir o regimento”. De facto, alguns partidos enviam perguntas antes da sessão, e o regimento prevê um prazo. Mas é para os serviços da Assembleia terem tempo de enviar as perguntas aos vereadores, e estes terem tempo de se informar e recolher dados, caso queiram dar as respostas completas logo no próprio dia. Além disso, em nenhum ponto do regimento está estipulado que o incumprimento deste “dever” tem como sanção a perda da palavra. Não faz sentido, não é possível, e nunca antes aconteceu, estarem proibidas perguntas novas. É uma limitação grave à liberdade de expressão, inaceitável numa assembleia de deputados eleitos.

Deixando de lado a possibilidade de ocorrerem, entre o dia do agendamento e o dia da sessão, acontecimentos que levantem perguntas inesperadas – incêndios, inundações, etc. –, cada partido tem a liberdade de escolher enviar ou não antecipadamente as perguntas que irá fazer. Mas talvez a senhora presidente – que nunca reconhece estar numa assembleia municipal, porque não tem instrução filosófica para ver nela dignidade, e em vez disso ralha com os deputados lembrando que estamos na “casa da cidadania” – não saiba distinguir entre uma sessão de política e um teatrinho, em que os deputados lêem em voz alta as perguntas que enviaram de véspera, e os senhores vereadores declamam a resposta que prepararam com os assessores; e entre a política e o faz-de-conta, escolhe o exercício que compreende melhor. Politicamente, é um erro gravíssimo. O pior de que me lembro.

A seguir, posta perante estes argumentos, deu o dito por não dito e decretou que ninguém era obrigado a enviar “as perguntas”, mas sim “os temas”. Correcção infantil. A substância dos regulamentos tem de fazer sentido, coisa que não encontramos aqui. Propõe-se que o agendamento passe a vir num impresso com a lista dos pelouros – mobilidade, urbanismo, habitação, finanças, desporto, cultura, assuntos sociais, protecção civil, etc. – e os partidos terão a sua lista de “temas” previamente comunicada. Qual é a diferença entre dar esta lista ou não dar nada? Nenhuma. Esse é o ponto. Comunicar antecipadamente “os temas” ainda faz menos sentido do que comunicar “as perguntas”. Como é óbvio, o tema é sempre o mesmo: a cidade de Lisboa. Qualquer pergunta sobre Lisboa tem de ser sempre admitida, tem de poder ser expressa incondicionalmente, em qualquer sessão, com ou sem envio prévio.

Mas naquela terça-feira maldita o impasse estava criado. E só se resolvia com recurso ao plenário. De resto, uma boa ideia. Era importante responsabilizar os partidos, todos os partidos, saber como se comportava cada um, deixá-los comprometidos com a decisão. Rosário Farmhouse não perguntou à assembleia se fazia, como ela fez, aquela interpretação do regimento; perguntou à assembleia se devia ou não dar a palavra aos deputados. E a votação confirmou o pior resultado. Votaram pelo corte da palavra o Bloco, o Livre, o PCP, os deputados “independentes”, o PS, o PSD, o PAN e a Iniciativa “Liberal”. Abstiveram-se o Aliança e o MPT. Só votaram contra os deputados do PPM, do CDS e do Chega. O PSD decretou que o seu voto “não era uma tentativa de limite à liberdade de expressão”, e ainda esclareceu que, de qualquer maneira, “não tinha intenções de falar”. Os “liberais” também quiseram deixar a mesma declaração, de que o seu voto também “não era uma tentativa de limite à liberdade de expressão”.

Efectivamente, nada disto foi uma “tentativa”; foi um exercício eficaz, uma manobra levada a cabo, com êxito, para impedir de falar os deputados dos grupos mais pequenos. O PSD escolheu não intervir na sessão de perguntas, tal como fez questão de explicar. E impôs a sua escolha aos outros partidos. A Iniciativa “Liberal” votou com a esquerda em peso – e com o PSD – pelo corte da palavra. Ainda um dia havemos de compreender para que servem estes sujeitos e o que é que eles querem “liberalizar”. O deputado do Aliança, Jorge Nuno Sá, explicou a abstenção dele dizendo que se recusava a dar aos seus pares a possibilidade de lhe cortarem a palavra. Nem sequer admitia que esse direito fosse votado ali; quem lhe dá e tira a palavra são os eleitores.

Tinha razão. A própria ideia de votar a palavra de um deputado é um erro indecoroso. Duvido até que aquele conjunto melancólico tenha consciência do que fez, esquecendo que legitimaram a censura, o princípio mais malsão da democracia. Hoje mandam eles, a esquerda faz maiorias – o PSD e a IL juntam-se a elas – e decidem quem pode falar. Amanhã pode acontecer o contrário. Mas o comboio do tempo é este: quem forma maiorias tem o poder de mandar calar quem quiser e exerce esse poder. Tornou-se um hábito banal. O abençoado “respeito pelas minorias” só anda pelas prosas woke e pelas respectivas prepotências. Este ataque à democracia é um escândalo a acontecer debaixo dos nossos narizes; mas os jornalistas e os comentadores só querem saber das conversas de corredor. Em matéria de perguntas, discutem os comentários do Presidente da República às listas de António Costa e ficam satisfeitos do altíssimo serviço que prestam à Pátria.

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