Num poema tardio, com quase quatrocentos versos, as redondilhas conhecidas como “Sôbolos rios que vão”, Luís de Camões (1524?-1580) escreve: “Vi aquilo que mais val / Qu’então s’entende melhor / Quando mais perdido for.” A passagem faz parte da paráfrase de um salmo (o salmo 136 ou 137, de acordo com a numeração), a que Camões acrescentou um bocadinho de Platão e de Santo Agostinho. O salmo e o poema descrevem o povo de Israel no seu cativeiro na Babilónia (por volta do século VII AC), e colocam uma pergunta difícil: como é possível falar de coisas que nos são muito familiares “em terra alheia”? Que sentido faz falar das coisas que nos interessam mais quando ninguém à nossa volta percebe aquilo que queremos dizer?

Os três versos de Camões exprimem uma teoria que à primeira vista pode fazer ainda mais confusão: a teoria de que as coisas importantes só se percebem bem em terra alheia; e portanto a teoria de que nunca percebemos bem aquilo que está diante dos nossos narizes. Camões compara as coisas importantes, e que queremos perceber, a objectos valiosos; e compara as coisas que finalmente se percebem a objectos perdidos. Está de acordo com a maioria, que tenta normalmente perceber aquilo que lhe interessa, e que acha que é valioso; mas pertence também a uma minoria que acha que as coisas mais valiosas são como objectos que perdemos e que temos dificuldade em encontrar.

O poema não é jovial, e a teoria pode não ser totalmente verdadeira; percebe-se por isso que haja quem pense que tudo se trata de um exagero. Afinal de contas a maior parte das pessoas acha que não há grandes vantagens em perder tempo com coisas que não se conseguem encontrar; e acha que o facto de não conseguirem perceber aquilo que os outros escrevem ou dizem não se lhes deve a si, mas aos defeitos daquilo ou daqueles que estão a tentar perceber. A ideia que têm sobre si próprios costuma porém ser lisonjeira.

As frases de Camões foram escritas há muito tempo; e é normal que mesmo aqueles que acham que as devem tentar perceber não as percebam muito bem. Afinal são versos difíceis. O único remédio é prestar-lhes atenção. Ao prestar atenção a estes três versos vemos todavia que não são difíceis porque estejam cheios de palavras obscuras, ou arcaicas, ou de expressões que já ninguém usa. São difíceis porque apesar de percebemos todas as palavras, e até as frases, não percebemos bem o que Camões nos está a tentar dizer. Ora é exactamente desta situação que Camões nos está a falar no poema: a de alguém que tem de escolher entre frases lhe parecem importantes mas que quase ninguém à sua volta consegue perceber bem, e frases que quase todos à sua volta conseguem perceber sem esforço de maior, mas que não valem grande coisa.

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